A basculante

O banheiro era pequeno, sujo, fedido. Dava pra sentir o fedor quando se chegava perto da basculante. O delegado Xavier tava irritado porque, ao entrar no terreno, sujara seus sapatos novos.

Eram caros, ele disse pelo rádio, comprados em Porto Alegre.Mas o barro era de Sapucaia mesmo, legítimo, meio vermelho, daqueles que gruda e, quando sai, deixa uma mancha filha da puta. E, pra chegar na basculante e tentar falar com a mulher, só enfiando o pé no barro. Por isso o Xavier me chamou. Eu tava atendendo uma agressão, caso simples, na divisa com São Leopoldo. Já tinha dado dois tabefes no guri, e ele tinha prometido não jogar mais pedras no vizinho, que estava, segundo todas as evidências, comendo sua namorada. E, se jogasse, era melhor não acertar em cheio como daquela vez. Agora o vizinho tava no hospital, com uma bandagem na cabeça, enquanto ele tava prestes a ir pra cadeia, a não ser que jurasse que não faria aquilo de novo, o que ele só fez depois de levar os dois tabefes. Ainda dei o terceiro, pra confirmar. O caso, é claro, só se resolveria com a volta do vizinho, que poderia retribuir a agressão atirando uma outra pedra no guri, talvez maior, ou dar um tiro nele, o que era mais provável. Mas isso era o futuro, e eu não sou pago pra adivinhar o que os habitantes de Sapucaia vão fazer, e sim pra dar uns tabefes ou levar pra cadeia depois que eles fazem.

A idéia, uma vez que a operação estava concluída com sucesso, era dirigir o Gol até a lanchonete do Valdir, perto dali, tomar uma ou duas cervejas, talvez três, quem sabe comer um xis-coração, aproveitando que naquela manhã eu tava sozinho no serviço. Mas a voz do Xavier no rádio era a única que me fazia alterar os planos rapidamente. Não se brinca com delegado estressado, mulher menstruada e traficante enganado. Eles não costumam ter senso de humor. O Xavier deu o endereço. Disse que era um caso de cárcere privado, que havia um ferido, a situação estava feia. Talvez eu pudesse me entender melhor com aquela gente. “Aquela gente”, para Xavier, significava alguém pobre, provavelmente vivendo de seguro-desemprego e sem porra nenhuma pra fazer, de modo que ficam aporrinhando a vida da Terceira DP, ferindo-se ou matando-se uns aos outros. Aquele gente, para o Xavier, era a minha gente, e não a dele. Portanto, era melhor eu assumir logo o caso, que ele queria sair daquela merda de vila e limpar os sapatos.
Quando cheguei, o Xavier não tava mais lá. Tinha passado o comando para um detetive novato na Terceira, o Eliéser, que falava, nervoso, com quatro brigadianos ao mesmo tempo. Os três soldados tinham revólveres. O cabo tinha uma 12 cano serrado. Se ele disparasse aquele negócio, botava o barraco inteiro abaixo e provavelmente ainda acertava algumas das dezenas de crianças que estavam por perto, muitas delas rindo, achando graça da situação.
“O Xavier disse que tem um ferido. Onde ele tá?”, perguntei.
“No banheiro”, disse Eliéser. “Levou um tiro da mulher. Os vizinhos ouviram o tiro, os gritos e telefonaram.”
“Onde foi o tiro?”
“Não sabemos. Mas a mulher disse que o próximo vai ser na cabeça.”
“O que ela quer?”
“O Xavier tentou descobrir, conversou com eles, usando aquela basculante ali, mas aí sujou o sapato, ficou puto, disse que tu saberia resolver a situação.”
O cabo resolver meter a colher na conversa:
“A porta de frente é bem fraquinha. É só dar uma pedalada e ela abre.”
Eu conhecia aquele cabo. Ele estava louco para usar a 12.
“Ninguém vai pedalar coisa nenhuma. O delegado me disse que era pra resolver no papo. Nossa estatística de mortes violentas está boa nesse mês, e tu não vai estragar o gráfico de pizza do delegado.” O cabo riu, achou que eu tava brincando. “Tá ouvindo, seu merda? Quem atirar vai se foder. Vai ser transferido pra Coronel Bicaco.” O cabo parou de rir. Ele sabia como funcionavam as coisas em Coronel Bicaco. “Eu vou lá falar com eles.” E meti o pé no barro, até ficar bem em baixo da basculante.
“Ó de casa.”
Uma voz feminina, surpreendentemente tranqüila, respondeu:
“Se alguém entrar, eu mato ele. Atiro bem no meio dos cornos.”
“Ela atira mesmo.” Essa era uma voz masculina, nada tranqüila.
“Calma, minha senhora. Eu sou o inspetor Otávio. Como é o seu nome?”
“O que isso interessa?”
“Nada. Mas eu gosto de saber o nome das pessoas. Por exemplo, ali na esquina tem um armazém, que pertence… Se não me falha a memória, já estou ficando meio velho…” Eu não lembrava mesmo. Mas aí a cabeça funcionou, apesar de eu não ter comido nem bebido nada desde o café da manhã e estar me sentindo meio fraco. Foi um verdadeiro milagre recordar o nome. “Dona Santa! Isso mesmo: Dona Santa. A senhora conhece ela?”
“Claro que conheço. É uma filha da puta que não vende mais fiado pra mim.”
“Eu falo com ela. Resolvo o problema. Ela é minha amiga de longa data.”
“Agora não quero comprar nada. Quero atirar nesse inútil.”
“Como é o nome dele?”
“Fabiano.”
“E o seu?”
“Fabiana. No casamento, as pessoas diziam que tínhamos sido feitos um pro outro. Depois ele virou esse estrupício.”
“Dona Fabiana, vou ser franco com a senhora. Se essa arma disparar e acertar a cabeça do seu marido, a senhora vai pegar trinta anos de cana.”
“Não me importo.”
“Talvez não agora. Mas depois de um mês no presídio a ficha cai, e aí senhora vai se importar.”
Silêncio na basculante. Eu estava falando baixo, não queria que os outros moradores ouvissem o diálogo. Tinha um negro musculoso pendurado no muro da casa vizinha, de olho na cena, se divertindo à beça.
“Dona Fabiana, posso pedir uma coisa pra senhora?”
“Depende,”
“Joga o revólver pela basculante.”
“Nem morta.”
“A gente diz que foi um acidente, que o revólver disparou sem querer.”
“Tá brincando? Eu mirei bem no meio das pernas dele, mas acertei no pé. É que ele tava longe. Agora tá pertinho, não vou errar.”
“Seu Fabiano?”
“O que é?”
“O senhor está disposto a dizer que a arma disparou por acidente?”
“O senhor ouviu: ela queria me acertar o saco. Essa mulher é louca.”
“Tá certo. Mas, se o senhor disser que foi um acidente, e ela jogar a arma pela janela, as coisas ficam muito mais fáceis. Talvez ela não seja presa. E talvez o senhor não leve um tiro no meio das fuças. Todo mundo sabe que os casais têm as suas desavenças.”
“O que é isso?”, perguntou Fabiana.
“É briga”, respondeu Fabiano. “O senhor desculpe a minha mulher. Ela só tem o primeiro ano.”
“E tu tem três faculdades: de malandragem, de sacanagem e de pilantragem.”
Eu ri. A tirada da Fabiana tinha sido boa. Acho que ouvi também uma risada do Fabiano.
“Quem me garante que, se eu jogar o revólver, vocês não vão entrar e me encher de tiro, ou me levar direto pra cadeia?”
“Eu garanto. Tenho ordens pra manter as estatísticas de crimes violentos bem baixas nesse mês. O delegado faz uns gráficos, bota na parede. Hoje é diz 29. Se morrer alguém, estraga o gráfico.”
Fabiano se interessou pelos gráficos:
“Ele usa qual programa? Excell? Eu posso arranjar pra ele um programa muito melhor. Faz pizzas em 3D.”
“Acho que ele vai gostar. 3D tá na moda.” Era o momento de resolver a questão. Conversa demais cansa, e a gente acaba voltando pro lugar em que se começou. “Dona Fabiana, é a sua chance. A senhora joga o revólver pela basculante, e eu entro na casa, sozinho. Aí a gente combina o que vai dizer. O que aconteceu de verdade não interessa.”
“E se esse desgraçado resolver se vingar? Eu só tirei um dedinho do pé dele, tá sangrando, mas não é nada demais. Ele pode pegar uma faca e me cortar. Tenho horror de faca.”
“Imagina que eu vou te cortar, minha princesa. Nunca na vida!”
“Não sou tua princesa.”
Mas a voz dela era de uma princesa. Ficaram em silêncio por algum tempo. Eu deixei que eles se olhassem, que avaliassem se valia a pena tentar de novo. É o que costuma acontecer com os casais normais, não é mesmo? Um olha no olho do outro e se pergunta: posso dormir agora, ou vou levar uma faca nas costas assim que pregar o olho?
Primeiro ouvi o barulho do metal contra o vidro, depois vi a ponta do cano, depois o cabo, e finalmente o revólver todo passou pela fresta da basculante e caiu no barro, bem no meio dos meus pés. Nem barulho fez. Aquele era barro legítimo, de Sapucaia, fofo e pegajoso. O negro musculoso pendurado no muro não gostou, deve ter achado o desfecho anti-climático. Azar o dele. É só ligar a TV que vai ver mortes à vontade.
Entrei na casa sozinho e falei com os dois. Havia um rastro de sangue da sala até o banheiro. Fiquei de olho em Fabiano, tentando adivinhar se ele iria atrás de um outro revólver pra vingar o dedinho do pé que se foi com o tiro de Fabiana. Perda de tempo, é claro. O futuro era problema deles. O meu era o presente. Combinamos as declarações. Tiro acidental. A arma foi deixada ali por um primo de Fabiano, de Morro Reuter. Promessa de ter mais cuidado na próxima vez. Achei melhor nem registrar a ocorrência. Afinal, não tinha acontecido nada demais. O delegado ia gostar. Perguntei se ele queria uma ambulância, ele disse que não. Tinha um primo (esse era de verdade) que era taxista. Eu já estava saindo quando Fabiana se adiantou, com a mão no ar, como uma criança do primeiro ano quando quer fazer uma pergunta:
“O senhor não se esqueceu aquilo que a gente combinou, não é?”
“Claro que não. O que a gente acertou é que…”
Ela me cortou:
“Tô falando da Dona Santa, a dona do armazém. A que não me vende mais fiado. O senhor disse que ia falar com ela, resolver a questão. Ele é sua amiga, lembra?”
“Pode deixar.”
E fui falar com a Dona Santa. Essa conversa é que seria difícil.

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