Vida velha

              

O inspetor federal chamava-se Avelar. Era um homenzinho magro, usava óculos, tinha cabelos grisalhos e um ar cansado. Com uns sessenta anos, não devia estar fazendo aquele tipo de serviço. Mas, em vez de ficar numa sala com ar condicionado da PF em Porto Alegre, coçando as bolas e olhando o rabo das secretárias, estava na Terceira DP, em Sapucaia, pedindo ajuda aos ratos locais numa investigação sobre pedofilia. Alguma merda devia ter feito. O Xavier, que detestava os federais desde que não conseguira passar nos concursos e se tornar um deles, tratava o cara como se fosse um brigadiano: nem café tinha oferecido. Estávamos os três conversando sobre que tipo de ajuda poderíamos oferecer, e Xavier já decidira que eu era o policial mais indicado para o serviço:

“O inspetor Otávio conhece todo o submundo de Sapucaia do Sul”, garantiu.
“O suspeito não pertence ao submundo”, lembrou Avelar. “É um cidadão respeitável, com posses.”
“Se ele se meteu em pedofilia é do submundo”, insistiu Xavier. “O Otávio vai acompanhar o senhor e prestar todo a ajuda possível.”
Xavier levantou-se e estendeu a mão:
“Boa sorte, colega.”
Avelar apertou a mão de Xavier e, sem qualquer protesto, acompanhou-me até a lancheria do Odevar, onde pedi um xis-coração caprichado e uma cerveja. Ele pediu um cafezinho. Enquanto eu comia, ele me contou quem era o nosso suspeito, com uma voz baixa e rouca:
“Chama-se Gert Wolf, é médido aposentado, viúvo. Tem sessenta e oito anos. Um filho casado, que mora na Bahia. É alemão, mas naturalizou-se brasileiro na década de 60, depois de se formar em Porto Alegre. Mora em Sapucaia há vinte anos. Tinha um consultório e também atendia num posto de saúde municipal, até se aposentar, há mais ou menos dois anos.”
“Conheço o doutor Wolf”, falei. “Mas não o vejo há um bom tempo. Parecia ser boa gente.”
“Depois que se aposentou, passa quase todo o tempo em casa, sozinho. Tem um blog sobre medicina comunitária e um perfil muito popular no Facebook. Contratou o serviço de banda larga mais rápido do município. Resumindo: não sai do computador e da internet.”
“Isso não é crime.”
“Mas comprar imagens de crianças nuas é.”
Parei um pouco de mastigar. Tentei imaginar o doutor Wolf como um velho sacana, gastando sordidamente seus últimos anos de vida na frente de um computador com o teclado e o mouse melecados de porra. Não foi tão difícil assim. Já vi doutores fazendo coisas bem piores, sem a desculpa da idade avançada e da solidão.
“Tenho um mandado de busca e apreensão para o computador e qualquer outro material que possa servir de prova”, continuou Avelar. “Tenho ordens para entrar no apartamento amanhã, às cinco e meia da manhã, e prender o doutor em flagrante se achar qualquer coisa comprometedora. E nós vamos achar.”
“Por que tanta certeza?”
“A operação está sendo planejada há meses. As informações sobre cada suspeito foram checadas várias vezes. A rede de pedofilia tem ramificações em São Paulo, no Paraná e no Rio Grande do Sul. Os caras não se limitam a trocar fotos. Também produzem, vendem e distribuem, até para fora do país. Rola muito dinheiro. Algumas crianças nas fotos têm menos de seis anos. Vamos estourar a rede em todos os estados.”
Meu xis-coração terminou, mas não pedi outro. Aquele assunto estava me deixando enjoado.
“Não consigo imaginar o doutor Wolf fazendo parte de uma quadrilha”, adverti. “Claro, ele pode ser um velho pervertido, ver essas fotos de crianças, mas…”
“Ele recebeu fotos de uma menina aqui de Sapucaia”, cortou Avelar, sem demonstrar qualquer emoção além do eterno cansaço. “E pagou por elas.”
Eu estava levantando a mão pra pedir mais uma cerveja. Desisti. Avelar seguiu em frente:
“A pessoa que enviou as fotos para o Wolf usou uma lan house, e por isso não conseguimos ainda a identidade e o endereço dela.”
“Quantos anos tem a criança?”
“Difícil dizer. Nas fotos os olhos estão cobertos por uma tarja. Mas, pelo corpo, deve ter onze ou doze anos.”
Wolf estava fodido. Uma operação desse tamanho teria grande cobertura da imprensa, o nome dele sairia no jornal e, quando fosse para o presídio, cedo ou tarde enfrentaria os castigos usuais para pedófilos e estupradores, executados não pelo braço fino da Lei, mas pelos punhos grossos da população carcerária. Essa justiça não falha. E, no caso do doutor Wolf, talvez fosse o que o velho merecia. Olhei as horas. Eram seis da tarde. Não tínhamos muito tempo, menos de doze horas. Perguntei:
“O que fazemos até a hora da operação?”
“Eu gostaria de ir até a lan house e tentar saber mais sobre a pessoa que mandou as fotos”, disse Avelar. “Mas não podemos correr o risco de alertar o doutor, ou até prejudicar toda a operação. Se isso acontecer, minha aposentadoria vai por água abaixo.”
“Posso ver as fotos?”
Avelar abriu sua pastinha de executivo. Vi um 38, cano curto, uma caixa de munição e um par de algemas, além de muitos papéis e um celular. O federal olhou em volta, certificou-se de que ninguém nos observava e me passou uma folha de papel com duas fotos impressas.
“Essas duas foram enviadas direto pro Wolf, por e-mail, há um mês. Supomos que sejam imagens exclusivas, muito bem pagas pelo doutor. Mas há outras da mesma menina espalhadas pela rede.”
As fotos mostravam uma garotinha nua, em poses não muito eróticas. Estava sentada num banco de cozinha, em frente a uma parede de madeira sem pintura. A pobreza do ambiente era explícita, assim como da própria modelo, que era magra demais, tinha os cabelos sujos e mal penteados e maquiagem grosseira. Difícil pensar em alguém se excitando com aquilo. Olhei bem para as fotos, tentando, sem sucesso, calcular a idade da criança. Mas percebi que ela tinha um sinal escuro, de tamanho médio, próximo da têmpora. “Sinal de beleza”, diria minha mãe. Devolvi as fotos para Avelar.
“Posso acionar os meus contatos”, sugeri. “Fazer algumas perguntas sobre garotas muito jovens que estejam se prostituindo, sem falar nada de internet nem de computador.”
“Tem que ser muito discretamente. Se houver o menor risco, é melhor desistir. Amanhã, quando prendermos o Wolf, poderemos chegar rápido na menina.”
Avelar foi pro seu hotel descansar, e eu dei um giro rápido pra conversar com meus principais informantes: gente honesta que morava nas vilas e convivia com a marginalidade, pequenos contraventores que davam o serviço pra evitar mais uma prisão e grandes vagabundos que me deviam algum favor. Ninguém sabia de uma menina de onze ou doze anos, com um sinal perto da têmpora direita, que estivesse se prostituindo em Sapucaia. Neusa, minha última esperança, no fim do giro, ficou indignada com a idéia de uma criança com doze anos estar nas ruas, ao lado de profissionais como ela.
“Aqui em Sapucaia, não tem disso. Pelo menos não aqui, na rua, onde estão as pessoas de bem. Tu devia olhar nessas festas dos bacanas, dos que têm dinheiro pra trazer as maiores sacanagens de Porto Alegre e fazer horrores nas suas coberturas.”
Deixei Neusa esbravejando contra os tais bacanas das coberturas, que não conseguiam apreciar a qualidade de seus serviços, e passei no Majestade. Pesquei dois ovos duros no vidro de conserva e pedi uma cerveja. Mas eu continuava enjoado, sem fome. Os ovos não me caíram bem. Decidi voltar pra casa e dormir um pouco, apesar do relógio já marcar uma e meia da manhã. Não consegui pregar o olho. As fotos da menina me assombravam. Às quatro e meia, saí outra vez e fui encontrar o Avelar no seu hotel. Era cedo demais pra servirem o café da manhã, de modo que tentamos achar algum boteco aberto na rua, sem sucesso. Embarcamos no carro de Avelar, uma caminhonete da PF com placas frias. A operação seria discreta em Sapucaia. Em Porto Alegre estava previsto todo o estardalhaço que a imprensa gosta.
Exatamente às cinco e meia, acordamos o porteiro do edifício, que dormia sentado em sua mesa. Avelar mostrou sua identidade e obrigou-o a nos levar até a porta do apartamento de Wolf, no quarto e último andar. Despachamos o porteiro de volta pro térreo e dissemos pra ele nos esquecer.
“Eu vou bater na campainha”, disse Avelar, segurando o mandado. O 38 estava bem visível, num coldre perto da sua axila esquerda. “Se ele não atender em dois minutos, arrombamos.”
Não foi preciso. Em menos de um minuto, um velho de pijama abriu a porta. Era mesmo o doutor Wolf. Ele também me reconheceu, mas não teve tempo de dizer nada.
“Polícia Federal”, anunciou Avelar, entregando o mandado.
Entramos.
“Acende a luz”, ordenou Avelar. O médico obedeceu, aparentemente sem entender o que estava acontecendo e sem olhar para o papel em suas mãos. Avelar apontou para uma cadeira na sala e disse:
“Senta ali e só levanta quando for chamado.”
Wolf sentou. Olhou para mim, confuso, à procura de alguma explicação. Mas o meu papel não era explicar nada.
“Onde está o seu computador?”, perguntou Avelar.
“No quarto.”
“O inspetor Otávio vai ficar aqui enquanto eu cumpro o mandado. Se eu fosse o senhor, ficava quieto e lia o que está escrito nesse papel. Pode usar o telefone, se quiser.”
Avelar desapareceu na direção do quarto. Wolf me olhou e disse:
“Eu lembro do senhor lá no posto.”
“Suspeita de tuberculose, há uns três anos.”
“Exatamente. No fim, era só uma gripe. O que tá acontecendo?”
“O senhor devia ler o mandado.”
Wolf leu. Quando chegou ao fim, estava branco e tremia.
“Isso aqui é um absurdo.”
“O senhor não tem fotos de uma menina menor de idade sem roupa no seu computador?”
Wolf baixou os olhos, numa confissão explícita. Estava ferrado. Logo seria preso, e sua vida se transformaria num inferno. Mas a vida daquela menina era um inferno maior ainda. O filho da puta merecia se ferrar.
“Nunca pedi que me mandassem foto nenhuma.”
“Não sei se isso faz alguma diferença. O senhor tem ou não tem as fotos no computador?”
“Tenho.”
“E pagou por elas.”
Wolf levantou-se, indignado, e esbravejou:
“Nunca! Nunca paguei por foto alguma. Ela me mandou sem eu pedir!”
Avelar estava voltando do quarto, já com as algemas na mão. Disse para Wolf:
“O senhor está preso.” E para mim: “As fotos da menina estão no correio eletrônico.”
Avelar algemou Wolf, disse quais eram seus direitos e emendou: “Nos acompanhe, por favor.”
Mas Wolf fincou o pé. Era maior e mais pesado que Avelar. Eu me aproximei, enfiei a mão com força em baixo do braço do doutor e disse:
“Se o senhor resistir, vamos ter que arrastá-lo.”
Wolf estava com os olhos cheios de lágrimas.
“Nós íamos viajar depois de amanhã. Vocês não podem fazer isso.”
“Quem ia viajar?”, perguntou Avelar.
“Eu e a Lucinha.”
“Quem é a Lucinha?”
“A menina das fotos. Estava tudo acertado com o pai dela.”
“Quanto mais o senhor fala, pior ficam as coisas”, disse Avelar. “Vamos embora.”
Tentamos levá-lo, mas ele gritou:
“Eu não fiz nada de errado! Eu amo essa menina!”
Era demais. Resolvi meter minha colher:
“O senhor não tem direito de amar uma menina de doze anos.”
“Ela tem dezesseis! Dezesseis! É subnutrida. É quase analfabeta. O pai é catador de lixo. A mãe desapareceu. Eu tenho duas passagens compradas. Vou levar essa menina pra Alemanha e dar uma vida nova pra ela! Pelo amor de Deus, vocês têm que compreender. Eu amo essa menina, só quero o bem dela!”
O tom desesperado de Wolf e as lágrimas nos seus olhos me emocionaram. É duro ver um homem desmoronando. Eu disse para Avelar:
“Quem sabe a gente ouve a explicação do doutor?”
Avelar não gostou nem um pouco da minha sugestão e respondeu:
“Ele pode explicar tudo na sede da Polícia Federal. Vamos embora.”
E tentou arrastar Wolf, que resistiu. Sem o meu auxílio, a tarefa de Avelar seria dura. Por outro lado, se eu não o ajudasse logo, seria uma insubmissão. Não era uma boa idéia. Tentei uma última cartada:
“Avelar, conheço o doutor Wolf faz tempo. Ele me curou de uma tuberculose. A gente podia ao menos ouvir o que ele tem a dizer. Cinco minutos não vão fazer diferença.” Me virei pro Wolf e perguntei: “O senhor tem essas passagens pra nos mostrar?”
“Tenho. Imprimi ontem. Eu mostro. E conto toda a história. Vocês vão entender, eu garanto.”
Avelar já tinha perdido boa parte daquele olhar durão que exibira até ali. Parecia exausto, seu estado natural.
“Cinco minutos”, disse ele. “Mas o preso continua algemado.”
Ajudei Wolf a pegar as passagens, que estavam numa gaveta da sua escrivaninha, a mesma que abrigava o computador. Mostrei-as para Avelar, que as examinou sem demonstrar maior interesse. Eram dois bilhetes eletrônicos de Porto Alegre para Frankfurt, com escala em São Paulo. Um no nome de Gert Wolf, e o outro no de Lúcia Fontes Pereira. Junto aos bilhetes estava um documento do Juizado de Menores, assinado por uma juíza e pelo pai da menor, Adão Pereira, autorizando a viagem de Lúcia. Avelar ficou mais interessado por esse documento do que pelas passagens. Mas, depois de pensar um pouco, disse:
“Isso não muda nada. As fotos estão no computador. É pedofilia. O mandado deve ser cumprido.”
“Pelo menos ouve o doutor”, pedi.
Avelar respirou fundo, contrariado. Pensei que iria me dar um esporro e ordenar que o preso fosse levado. Mas, em vez disso, sentou-se, olhou para o médico, que ainda estava de pé e algemado, e disse:
“Estou ouvindo.”
E Wolf começou a contar sua história:
“Vi umas fotos da Lucinha por acaso, na internet, em dezembro do ano passado. Estava navegando num site erótico…” Fez uma pequena pausa, como se estivesse tomando uma decisão, e depois seguiu, sem mais pausas, até o final: “Não vou mentir sobre nada, nada mesmo, acho que não adianta, vocês têm o computador e podem olhar tudo que está lá. Vi a Lucinha num site especializado em fotos de jovens. Adolescentes. Não de crianças! Vocês sabem que existe todo tipo de coisa na internet, é só procurar. Eu gosto de ver mulheres bem jovens, talvez porque me sinto cada vez mais velho. Eu vivo sozinho há cinco anos, desde que minha esposa morreu. Gasto um bom tempo com o meu blog, escrevendo sobre medicina comunitária, e ultimamente fico pelo menos algumas horas por dia no Facebook. Tenho muitos amigos espalhados pelo mundo, e isso me entretém. Quase não saio de casa. À noite, em vez de ver TV, continuo na internet. De vez em quando baixo um filme, mas o que gosto mesmo é de pesquisar fotos e arquivar. Quanto mais eu tenho, mais quero colecionar. Chamem do que quiserem: tara, desvio de personalidade, senilidade precoce. Nunca mostrei as fotos pra ninguém, nunca enviei as fotos para quem quer que seja, nunca quis fotografar. Eu só pesquiso e arquivo o que me agrada. Não sou ingênuo. Sei que existe gente sem caráter que explora crianças, que isso é crime. Gostaria que esses bandidos fossem todos pra cadeia. Mas eu sempre pensei assim: não sou criminoso, estou aqui na minha casa, vendo fotos, que é o que me resta, aos sessenta e oito anos, e ninguém tem nada a ver com isso. Sou um colecionador, um velho tarado, se quiserem, mas não sou um pedófilo. Olhem as minhas fotos! Não são infantis. São de jovens mulheres. Posso mostrar centenas de obras-primas da pintura que são exatamente assim. Estão em museus. Valem fortunas. Não me excito com crianças. Sou médico. Já cuidei de muitas crianças e adolescentes. Já tive centenas de oportunidade de me aproveitar. Perguntem por aí se alguém tem alguma queixa sobre a minha conduta. Não conheço o senhor, que é policial federal, mas conheço o senhor, que é daqui de Sapucaia e foi no posto algumas vezes. O senhor ouviu alguma coisa contra mim? Eu pensava de vez em quando: será que depois de tantos anos sendo correto, eu não tenho direito agora, já velho, de fazer uma coisa que talvez seja errada, mas que não faz mal a ninguém?”
“Acabaram seus cinco minutos”, disse Avelar, levantando-se. Mas Wolf não parou. Falava cada vez mais rápido, e sua respiração começou a ficar ofegante:
“Vocês devem estar pensando: e as fotos dessa menina que ele recebeu por e-mail? Vocês acham que eu paguei por elas porque na mensagem está escrito: ‘Obrigado. Recebi o dinheiro. Beijo.’ Quem mandou a mensagem foi a Lucinha e as fotos são dela, mas vocês entenderam tudo errado.”
“Os errados somos nós?”, disse Avelar. “O senhor tem muita cara de pau.”
“Desculpe, eu não quis ofender. Como eu disse, vi umas fotos da Lucinha num site erótico, em dezembro do ano passado. Não eram boas fotos. Amadoras. Luz ruim. E a menina era quase uma criança; já disse que crianças não me interessam. Eu estava prestes a seguir em frente quando vi aquela marca que ela tem perto da têmpora. É uma marca incomum. Lembrei de uma criança com uma marca idêntica que eu atendera pouco antes de me aposentar. A possibilidade daquela criança estar sendo explorada sexualmente me deixou… Preocupado.”
“Preocupado, ou excitado?”, perguntou Avelar.
“Preocupado. Ela era uma criança. Já disse: não me excito com crianças.”
“Conta outra, doutor. Otávio, vamos levar esse cara, que daqui a pouco ele vai dizer que é Jesus Cristo e vai nos salvar.”
Mas eu permaneci sentado. Queria ouvir a história. Estava acreditando em Wolf, porque tudo que ele dizia tinha uma lógica maluca, cheia de absurdos, e, portanto, era bem humana. Além disso, um velho como ele não conseguiria mentir naquela velocidade. Geralmente eu sei quando uma pessoa mente. Alguns me enganam, é claro, mas só os profissionais do ramo. Eu propus:
“Vamos ver como a história termina, Avelar. Talvez até facilite o nosso serviço. Tu não queria o endereço da menina?” E para Wolf: “Faz um resumo, doutor. Como o senhor encontrou essa Lucinha?”
“Fui no posto de saúde”, respondeu Wolf. “Todo mundo me conhece lá, sou da casa. Foi fácil achar o endereço da menina nos arquivos das consultas. Fui até a casa dela. Casa? Aquilo não é casa. É um barraco caindo aos pedaços, com buracos no teto. Ela estava sozinha em casa, o pai estava catando papel e alumínio, como sempre. Ela ficou muito preocupada quando expliquei porque estava lá. Disse que o pai a mataria se soubesse que andava ganhando algum dinheiro com as fotos. Eu disse pra ela que aquilo era errado e que ela tinha que parar. Sabe o que ela me disse? Que se não fizesse as fotos, ia morrer de fome e que…”
“Tá bom, doutor”, cortei. “Se todo mundo que passa fome nessa cidade saísse por aí cometendo crimes, metade de Sapucaia ia em cana. ”
“Essa menina é subnutrida, está doente. Eu tinha que fazer alguma coisa.”
“E aí começou a pagar pelas fotos”, disse Avelar. “Fotos exclusivas, mandadas pelo correio eletrônico. Pra ajudar a pobre menina, claro.”
”Não! Não paguei foto nenhuma. Eu disse pra ela que não contaria nada para o pai, mas que faria alguma coisa por eles. E rápido.”
“Eu vi as fotos no computador”, lembrou Avelar. “E a mensagem agradece pelo dinheiro.”
“Dei um dinheiro pro pai dela, pra comprar um rancho, tapar os buracos no telhado, vocês não sabem o que é a vida deles. Logo depois a Lucinha me mandou as fotos de presente. Ela pensou que eu gostaria. Não entendeu direito.”
“E não gostou?”, perguntei. “As fotos continuam no computador. Se tivesse apagado tudo, talvez nós nem estivéssemos aqui.”
Wolf olhou para mim, hesitou, percebi que ele estava prestes a contar uma mentira. Suas mãos contraíram-se, seus ombros ficaram mais tensos, olhou para o chão. Mas ele desistiu de mentir. Abriu as mãos, empertigou-se e disse:
“Gostei! Pronto. Vocês querem saber? Agora sabem. Eu gostei daquelas fotos. Percebi que ela não era mais uma criança. Querem saber mais? Eu conto tudo. Acabei me apaixonando por ela. Vão me prender por isso? Qual é a lei que me proíbe? Nunca toquei nessa menina. Fui três vezes no barraco, e nem me aproximei dela. Pelo amor de Deus! Eu só quero o bem da Lucinha.” E, desafiante, encarando a mim e a Avelar, completou: “Vão até lá. Agora. Me deixem trancado aqui, algemado, amordaçado, preso no banheiro, e vão falar com ela. Perguntem quem eu sou pra ela. Perguntem se eu toquei nela. Perguntem o que eu disse, o que eu fiz, o que eu estava tentando fazer. Vão lá, agora!”
“Sabe o que vai acontecer se ela confirmar essa história da viagem?”, disse Avelar. “Além da acusação de pedofilia, o senhor vai responder por rapto e tráfico internacional de menores.”
“Rapto? Vocês enlouqueceram? Tudo que essa menina quer é sair daquele barraco imundo. O pai concorda. Ele assinou a autorização. A juíza também! Vocês viram. É tudo legal.”
“Essa parte da história não me convence”, disse Avelar. “Nenhuma juíza autorizaria essa viagem. O documento deve ser falso.”.
“Não é falso. Verifiquem. Eu disse pra juíza que a menina vai para um tratamento de saúde na Alemanha. E vai mesmo. Vai ser a primeira coisa que vamos fazer lá. Eu mostro as reservas que fiz no hospital. Eu mostro tudo. O que mais vocês querem? Que eu… Que…”
E, sem completar a frase, soltando um gemido, Wolf caiu feito um saco de batatas. Como estava algemado, nem esboçou segurar-se e amenizar a queda. Por sorte não bateu a cabeça. Eu me agachei ao lado dele. Wolf, com o rosto contraído de dor, conseguiu murmurar:
“Meu remédio. Na mesinha ao lado da cama.”
Peguei a caixinha de Isordil e botei um comprimido em baixo da língua de Wolf. Tirei as algemas do velho e, com a ajuda de Avelar, consegui fazer com que deitasse num sofá. Ele disse que era cardíaco, tinha anginas freqüentes e desconfiava de um enfarte, porque nunca sentira tanta dor. Telefonei para pedir uma ambulância. Enquanto esperávamos, Wolf completou a história:
“Tenho pouco tempo de vida. Pensei em terminá-la com Lucinha. Nós iríamos para o interior da Alemanha e nunca mais ninguém saberia da gente. Pelo menos até eu morrer. Separei cinqüenta mil reais para o pai dela comprar uma casa decente e iniciar um negócio próprio. Eu estava feliz. E ela mais ainda. Sei que sou um velho e devo ser repugnante pra ela. Ela não é virgem, nem inocente. Tanto que me mandou as fotos. Achava que me pagaria tudo com sexo.” Wolf fez uma pausa e tomou ar antes de prosseguir. “Como se eu pudesse fazer muito sexo com o coração desse jeito. Não sei o que é sexo com uma mulher há mais de cinco anos.” Olhou para Avelar. “Se eu levar a Lucinha pra Alemanha, nós casamos assim que ela completar dezoito anos. Vou morrer em breve, e ela vai herdar um bom dinheiro. Se ela ficar aqui, vira uma prostituta e talvez morra antes de mim. Pelo amor de Deus, nos deixem viajar.”
Wolf parou. O Isordil fizera efeito, e a dor parecia ter diminuído. Ouvimos a sirene da ambulância se aproximando.
“E então?”, disse Wolf. E havia esperança na sua voz. “Vocês vão me deixar viajar?”
“Não”, disse Avelar. “O senhor é um criminoso.”
Wolf olhou para mim e insistiu:
“Eu sou um criminoso?”
“É”, respondi. “O senhor tentou comprar uma menina de dezesseis anos.”
“Vocês não podem pensar na Lucinha? No que vai acontecer com ela naquele barraco horrível, tirando fotos nua para vender por uns trocados? Vocês não vêem que comigo ela tem a chance de começar uma vida nova?”
A campainha tocou. Avelar foi atender. Wolf ficou me encarando, querendo uma resposta. E eu disse:
“Quando o senhor era médico e atendeu aquela criança com um sinal na têmpora, não percebeu que ela era muito pobre e subnutrida?”
“Percebi.”
“E não tentou fazer alguma coisa por ela?”
“Eu fiz o que podia. Receitei um vermífugo e vitaminas. Mandei uma assistente social explicar pro pai dela que tinha que ir na escola e se alimentar direito, em vez de catar lixo junto com ele.”
“Mas não pensou em oferecer cinqüenta mil reais pro pai e levar a menina pra Alemanha.”
“Claro que não.”
“Por quê?”
Wolf ficou quieto. Os paramédicos chegaram e colocaram-no na maca. Quando estavam prestes a levá-lo, ainda conseguiu responder, com toda a convicção do mundo:
“Porque eu não estava apaixonado. Agora estou.”
A maca foi colocada na ambulância. Entrei na caminhonete de Avelar. A idéia era seguir a ambulância até o hospital. Contudo, mal tínhamos percorrido alguns metros, ela parou. Descemos e fomos verificar o que tinha acontecido. Wolf sofrera novo enfarte e seu coração tinha parado. Os paramédicos tentaram reanimá-lo sem sucesso. Em vez de ir para o hospital, iria para o cemitério. Pelo menos morreu apaixonado.
Depois que nos livramos da burocracia, o que consumiu o resto da manhã, levei o Avelar para o Majestade. Dessa vez ele aceitou tomar uma cerveja. Combinamos o que fazer em relação ao Wolf e à menina. Ele diria que não tinha encontrado nada no computador e que o suspeito enfartara antes de dizer qualquer coisa. Pra que foder com a reputação do velho, agora que estava morto? Eu fiquei encarregado de achar a menina, de descobrir quem estava comprando as fotos dela, de colocar o cara em cana e de informar a PF sobre qualquer conexão do filho da puta com a rede de pedofilia na internet.
Terminamos a cerveja. Avelar disse que estava cansado e voltou para Porto Alegre. Eu fui até o posto de saúde, descobri o endereço da menina e fui visitá-la naquela mesma tarde. Lucinha estava separando lixo com o pai na frente do barraco imundo. Dei a notícia da morte de Wolf. Ela imediatamente começou a chorar como uma criança. Não parecia ter dezesseis. Parecia ter doze. Mas, quando perguntei, o pai confirmou que ela faria dezessete dentro de um mês. Wolf não mentiu sobre aquilo. Acho que não mentiu sobre nada. O pai também estava arrasado. Foram-se os seus cinqüenta mil reais. Para a menina foi-se a prometida vida nova. Só sobrou a velha. Levei-a para dentro do barraco e disse que não falaria para o pai sobre as fotos, mas ela teria que me dizer para quem as estava vendendo. Ela disse que era para um sujeito de Novo Hamburgo que passava lá de vez em quando. Fui atrás dele, mas isso já é outra história. Lucinha virou prostituta na rua Garibaldi, perto da rodoviária de Porto Alegre, e morreu baleada pelo seu cafetão menos de um ano depois. Wolf está enterrado no cemitério de Sapucaia do Sul e foi homenageado pelo município com uma placa de prata no posto de saúde onde conheceu Lucinha. Nunca mais vi o Avelar. Deve ter se aposentado. Espero que também descanse em paz.

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