Sobre jornalismo e culinária

Ao contrário de muitos jornalistas formados, não me julguei ofendido ao ser comparado com um cozinheiro pelo Gilmar Mendes. Recebi meu diploma (de jornalista) no dia 31 de dezembro de 1980, depois de quatro anos de estudos na FAMECOS/PUCRS. Fui repórter durante um ano, na Folha da Tarde, escrevi crítica de cinema para diversos órgãos da imprensa e da internet e agora estou aqui, neste blog, onde continuo exercendo o jornalismo. Não tenho diploma de cozinheiro. Na verdade, meus conhecimentos sobre a arte culinária eram bem precários até uns dez anos atrás. Há uma lenda – maleficamente espalhada pelo Giba – de que eu, durante as filmagens de Inverno (1983), descobri que o leite, ao ferver, aumentava muito de volume e podia derramar. Não confirmo, nem desminto. É uma boa lenda.

De qualquer maneira, hoje sei cozinhar. Faço meus risotos, meus peixes, minhas massas, com razoável sucesso de crítica e público. Ao contrário do jornalismo, que me exigiu quatro anos de faculdade, a culinária me exigiu apenas a leitura atenta de alguns livros e muita pesquisa na internet. Basta meio neurônio e meio quilo de paciência para seguir uma receita, se esta for bem escrita e não exigir ingredientes exóticos demais. Cozinhar é, também, uma excelente terapia, com um prêmio adicional (pelo menos aqui em casa): quem cozinha não precisa lavar a louça. É óbvio que um cozinheiro formado, com diploma universitário e alguns anos de estudo, sabe muito mais do que eu. E, sendo um profissional, está capacitado para fazer coisas que eu nem imagino fazer. Mas eu não fugiria da raia num concurso de risotos vegetarianos. Mesmo amador, talvez eu tenha alguma coisa para ensinar.

É óbvio que um cidadão qualquer, com bom domínio da arte de escrever ou de falar, pode contribuir para um jornal, uma rádio ou um canal de TV. Basta que ele domine um assunto – assim como eu domino um risoto vegetariano – para cumprir esse papel de colaborador. Advogados escrevem sobre legítima defesa da honra; médicos, sobre os males do colesterol; físicos nucleares, sobre a bomba atômica; e assim por diante. Mas isso não os transforma em jornalistas profissionais. E meu risoto não me torna um cozinheiro profissional. É preciso separar ofícios (escrever, cozinhar, chutar uma bola), das profissões de jornalista, cozinheiro e jogador de futebol. É isso que o Gilmar Mendes e a turma do Supremo não entenderam.

A exigência do diploma para exercer o jornalismo não impedia qualquer pessoa de expressar-se livremente num jornal ou qualquer outro veículo. É de uma estupidez atroz invocar a liberdade de expressão contra o diploma. O diploma simplesmente separava os profissionais dos amadores. Os que queriam expressar sua opinião, sem qualquer regra, com absoluta liberdade, dos que são obrigados, antes de dar a sua, a fazer entrevistas, pesquisar, buscar o contraditório, conhecer regras, discutir códigos de ética e passar quatro anos em salas de aula e laboratórios, para errar menos antes de dar opinião. Ao cassar o diploma, o Supremo enfraqueceu não um ofício, ou uma atividade. Enfraqueceu uma categoria profissional.

Gilmar Mendes diz que cozinheiros não precisam de diploma universitário. Podem aprender seu ofício como eu: nos livros, na internet, na prática. Ele está certo. Não tenho dúvida que um jornalista também pode fazer isso. A diferença é que, assim como eu, mesmo sabendo fazer risoto, não posso me comparar a um cozinheiro profissional, um advogado escrevendo sobre direito não pode se comparar a um jornalista profissional. Um bom curso universitário é o melhor lugar para se aprender jornalismo no Brasil. A exigência de diploma forçava as empresas a contratar gente com formação específica, e não amadores supostamente talentosos. Com a falência do diploma, em breve deve perder o sentido o registro profissional. Os sindicatos tendem a ficar mais fracos. Os salários, piores. Os textos, mais fraquinhos. As idéias, mais pobres.

Aqui no blog da Casa de Cinema escrevem três jornalistas profissionais – eu, a Luciana e o Giba – e um amador (apesar de ter feitos algumas disciplinas de Jornalismo na UFRGS) – o Jorge. Isso não faz a menor diferença na qualidade dos textos, nem na responsabilidade ética e estética do que cada um publica. Cabe ao leitor julgar a qualidade. O Jorge, aliás, tem se destacada justamente por fazer a crítica da mídia, e faz muito bem.

Mas, caro leitor, se isso aqui fosse um jornal diário, ou um blog de notícias políticas, ou um site de reportagens, garanto que o Jorge seria um colunista eventual, e não um repórter, ou editor, ou revisor, ou diagramador, ou qualquer função que exigisse rotina profissional diária. Não é a praia do Jorge. Já a Luciana poderia fazer as reportagens (fez isso por muitos anos na TV); o Giba poderia revisar, pesquisar, escrever (idem, no rádio); eu poderia ser pauteiro, editor, crítico (idem, no jornal). Estudamos quatro anos para isso. Tivemos professores. Depois experimentamos os desafios diários do jornalismo profissional. Agora fazemos outras coisas, por opção pessoal, mas continuamos aptos. Temos o diploma, que é o símbolo de uma formação específica e um atestado de paciência: ao contrário do Jorge, agüentamos o curso até o fim, convivemos com outros estudantes da área, fizemos provas e aprendemos duas ou três coisas importantes sobre a nossa profissão.

Fazer um bom risoto e escrever um bom texto é uma coisa. Ser cozinheiro profissional ou jornalista profissional é outra. Espero que os milhares de estudantes que neste momento estão fazendo seus cursos de Comunicação, possam – ao contrário de Gilmar Mendes – ver a diferença e continuar acreditando em sua formação universitária. Estudar é a melhor maneira de evitar declarações infelizes como as proferidas por membros da mais alta corte do nosso País. Se Gilmar Mendes cozinha como argumenta, jamais acertará o ponto de um bom risoto.

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