Os erros de Richard Dawkins – 1

 

Para quem, aos 24 anos, com a ajuda de três amigos, sem qualquer pretensão e sem qualquer conhecimento musical, “aprendeu” a tocar bateria e criou um banda de rock – e ficou nela por 18 anos – começar um novo campo de estudo quase aos 54, sem qualquer compromisso acadêmico ou profissional,  é moleza. Com a mesma inconsequencia juvenil (e o mesmo entusiasmo) com que eu ouvia Sex Pistols, Ramones e Dead Kenedys, agora eu leio Stephen Jay Gould, Richard Dawkins e Matt Ridley. É claro que não vou me tornar um biólogo evolucionista (será que alguém acha que me tornei um músico?), mas, quanto mais eu penso  na constituição básica dos seres humanos, que é biológica e genética (além de cultural, mas isso eu sei desde que tenho 4 anos), mais eu sinto que passei 50 anos numa profunda ignorância. Será que ainda posso recuperar um pouco do terreno perdido?

 

Como quem pega as baquetas pela primeira vez, com certeza vou cometer minhas burradas e atravessar o ritmo, mas quem disse que estar sempre no ritmo certo é o certo? O rock é o reino da liberdade e da desordem. Por isso, como um velho punk cabeludo, não tenho medo de dizer que Richard Dawkins, grande cientista e escritor, eleito em 2005 pela revista Prospect como o mais influente intelectual britânico, comete alguns erros graves em seus livros. Li quase todos que saíram no Brasil, incluindo, é claro, o clássico (e divertido) “O gene egoísta”. Dawkins  é um sujeito raro e admirável: combina conhecimento científico, bagagem literária e talento para escrever. À sua altura, no campo da biologia, somente Stephen Jay Gould. Não é à toa que eles atingiram os mais altos postos acadêmicos em Harvard (Gould) e Oxford (Dawkins), além de venderem suas obras no mundo inteiro. Gould morreu em 2002, mas Dawkins continua vivo e saltitante. Por isso, posso dar-lhe umas baquetadas na cabeça sem qualquer remorso.

 

Terminei ontem de ler “O capelão do diabo” (com muito atraso, pois o livro é de 2003). Leitura agradável e, como sempre acontece com os textos de Dawkins, muito instrutiva. Por isso mesmo é que resolvi listar pelo menos três grande erros que, na minha modestíssima e amadora opinião, estão presentes na obra, que é uma coletânea de ensaios organizada de modo a traçar uma espécie de “perfil filosófico” de Dawkins a partir de textos dirigidos aos leitores não especializados (entre os quais me incluo, é claro). Neste post vou comentar o primeiro erro. Em breve publico os outros.

 

No ensaio “O capelão do diabo”, Dawkins dá a entender que a religião não passa de uma grande ilusão, de uma fábula contada para crianças indefesas, e que ela deve ser substituída por uma visão exclusivamente científica da vida. Discordo. Mais do que isso: essa afirmação é uma bobagem. Dawkins sempre perde o humor quando fala de religião. E perde as estribeiras quando fala dos criacionistas. Ao contrário de Gould, que propõe a convivência de dois campos distintos – o científico para dizer como o mundo funciona, e o místico para dizer como ele deveria funcionar – Dawkins teve o trabalho de escrever as mais de 400 páginas de “Deus: um delírio” para dizer que a idéia da transcendência não serve para nada (na verdade, serve para fazer mal à humanidade). Portanto, os seres humanos ficariam em melhor posição se a religião não existisse.

 

Ontem, como um turista acidental, num intervalo de menos de uma hora entrei em duas igrejas de Brugge (Bélgica). Em uma delas, um organista tocava Bach. Em outra, havia uma estátua de Michelangelo (A Virgem com o Menino). Em ambas, vitrais fantásticos, com mais de 500 anos, eram testemunhas de um outro tempo, de um outro modo de viver, de um outro homem. Como dizer que a religião não serve para nada? Como separar a arte da religião, se elas nasceram juntas e foram fundamentais para o nosso processo evolutivo cultural? Será que Dawkins não gosta de Michelangelo e acha o teto da Capela Sistina uma grande perda de tempo? Duvido. O que acontece é que a conversa fundamentalista, anti-evolucionista e burra dos criacionistas tira Dawkins do sério, e aí ele prefere invocar o evolucionismo como se ele fosse (na expressão de Darwin) um capelão do Diabo (que, como dizia Raul Seixas, é o pai do rock). Tudo bem, é compreensível, mas até um punk tem que reconhecer que Bach é do caralho. Seja punk, mas não seja burro.

 

A capacidade de imaginar uma vida depois da morte (origem dos mitos e das religiões) foi o primeiro passo para imaginar todas as outras histórias e inventar a poesia, o teatro, a literatura, o cinema, etc. Nietzsche não cansava de dizer que o a criação dos deuses olímpicos pelos gregos foi uma forma de organizar o mundo, já que a ciência ainda dava seus primeiros passos, e ninguém consegue viver no caos absoluto. Nietzsche tinha suas (enormes) diferenças em relação ao cristianismo, mas conseguia ver no pensamento religioso e transcendente uma força criadora fundamental e muito humana. Toynbee, ao analisar a ascensão e a queda das civilizações, detectou na religião uma capacidade extraordinária de funcionar socialmente, dando a cada povo uma identidade coletiva (próxima, talvez ao que Jung chamava de inconsciente coletivo). Assim, a religião está longe de ser inútil. É claro que, como Dawkins prova, ela é responsável por inúmeras mortes sangrentas, guerras, torturas absurdas e intolerâncias de todos os tipos. Talvez ela seja a responsável pela extinção da raça humana, se terroristas fundamentalistas decidirem que nossa hora chegou (que São Darwin nos livre!). Mas Bach continuará sendo tocado nas igrejas, para que também reconheçamos nossa dívida de gratidão com a idéia da transcendência, seja ela de que tipo for. A minha, por favor, pode vir acompanhada de uma boa garrafa de bordeaux.

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