O legal e o moral

 

As leis são complicadas. Quase sempre são elaboradas com muitos artigos, capítulos, parágrafos e incisos. Às vezes, em vez de encerrar o assunto em sua própria redação, remetem a outras leis. Também há um sistema de hierarquia, de modo que algumas leis podem ter seus efeitos relativizados, ou até anulados, por leis de instância superior. Enfim, esse emaranhado legal acaba sendo quase indecifrável para os cidadãos comuns. Para mover-se com alguma segurança nesse cipoal, algumas pessoas estudam Direito e se tornam especialistas em leis. Tenho vários amigos advogados, pessoas talentosas e competentes, que ganham suas vidas ajudando cidadãos comuns – como eu – a interpretar as leis, invocá-las corretamente e resolver problemas de todo tipo.

 

Mas há um campo em que cidadãos que nunca estudaram Direito e advogados estão em pé de igualdade: o campo moral. Para determinar se determinada ação é moral ou imoral, ética ou anti-ética, é preciso muito mais que conhecer leis. Ninguém sabe exatamente qual é a receita, mas, na minha opinião, é preciso misturar uma boa dose de senso comum, obtido em bases mais intuitivas que racionais; noções de filosofia, principalmente dos pensadores pós-Nietzsche; e uma compreensão – que tem suas sutilezas, mas é decisiva – da natureza humana, tanto em suas bases biológicas e evolutivas, quanto nas culturais e históricas.

 

Escrevi um romance, chamado “Professores”, que parte de uma discussão sobre os limites do relacionamento de um professor e de uma aluna, tentando mostrar como a “verdade” sobre a moral, sempre que aplicada à vida concreta dos seres humanos, é muito escorregadia. Portanto, admito que, mesmo com um grande esforço, às vezes é impossível decidir sobre o que é certo e o que é errado. E ninguém, a não ser um louco com mania de grandeza, pode afirmar que é capaz de sempre julgar com absoluta precisão os atos humanos.

 

Isso não impede, contudo, que algumas verdades sejam ditas. A primeira delas é que uma lei, ou um processo legal, ou uma decisão legal, não pode ser imoral. A atual Lei dos Direitos Autorais, só para citar um caso bem conhecido, é uma lei que possui capítulos imorais, que deveriam ter sido há muito revisados, pois a sua aplicação é danosa para a sociedade, embora seja altamente lucrativa para uns poucos. Saber que a Ministra da Cultura está se esforçando para manter a situação atual e contribui , direta ou indiretamente, para sustentar privilégios, é muito triste.

 

Outra tristeza é saber que dez projetos de filmes de longa-metragem, vencedores do edital de finalização do IECINE e do Governo do Estado estão sendo prejudicados por uma ação de um cineasta que não foi contemplado no concurso. É claro que este blog não é o lugar para discutir os detalhes da ação, até porque ela é, do ponto de vista da legislação, dos mandados de segurança, das manobras jurídicas, muito complexa. É assunto para  juristas, advogados, enfim, pessoas que sabem o que fazer para rodar as engrenagens do poder judiciário. Mas creio que uma verdade emerge tranquilamente dessa disputa: é imoral e anti-ético que um parte significativa do cinema gaúcho, representado por dez realizadores, tenha evidentes prejuízos pela manobra isolada de um de seus membros. É triste constatar que, acima dos interesses de uma  coletividade, acima da luta para estabelecer relações democráticas e transparentes com o poder público, ações individuais coloquem tudo a perder.

 

Não estou discutindo a ação legal, apesar de confiar num desenlace justo (que só será justo se acontecer nos próximos dias). Mas discuto a moralidade do que aconteceu até agora. O consolo é que a nossa memória, no plano pessoal, e a História, no contexto social (e não o Diário Oficial!)  revelarão e arquivarão a essência dos fatos. E quem sabe, no futuro, normas morais e éticas consigam lançar luzes mais eficientes sobre manobras legais e jurídicas. Nem mesmo o talento e a competência de um advogado – ou de um exército de advogados – deveriam colocar a lei a serviço de interesses particulares e privados, quando estes flagrantemente são contrários, do ponto de vista moral, a interesses coletivos e públicos. Se o juiz olha apenas para a lei, não está olhando para o que realmente interessa.

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