O filme não é fascista, mas o público…

 

As últimas imagens de "Meu nome não é Johnny" são cartões que informam o que aconteceu com o "Johnny" de verdade, retratado brilhantemente na tela por Selton Mello: recuperado do vício e tendo pago sua conta com a sociedade (alguns anos na cadeia), o traficante agora é músico e produtor. Está, portanto, totalmente "recuperado". Logo depois deste cartão, e com parte do público já levantando-se das cadeiras, ouvem-se alguns aplausos. Não são aplausos entusiasmados, de quem está demonstrando sua satisfação pelo espetáculo. São aplausos de satisfação com o epílogo do filme e com o destino de seu personagem principal, que conseguiu reconstruir sua vida e hoje, longe de ser um marginal, é um cidadão do bem. Não tenho provas científicas para esta interpretação dos aplausos. É um pouco de intuição e um pouco de experiência pessoal com a recepção de filmes pelo público de classe-média de Porto Alegre (o filme estava passando num shopping-center).

Os aplausos me fizeram pensar. Esse é o público que, há algumas semanas, lotava as salas para ver "Tropa de elite" e aplaudir o capitão Nascimento torturando e matando marginais. Há outras coincidências: os dois filmes são baseados em situações reais do mundo do tráfico de drogas do Rio de Janeiro, os dois filmes mostram a corrupção policial, os dois filmes têm "heróis" moralmente escorregadios. Nascimento é incorruptível, o que não impede que seja também um assassino. João Guilherme é traficante internacional de cocaína, o que não impede que seja ingênuo e fique longe da violência (tanto que não usa arma de fogo em momento algum do filme). Heróis modernos são assim mesmo: cheios de paradoxos e resistentes a classificações simplistas.

Uma coisa, no entanto, parece separar radicalmente os dois filmes: "Tropa de elite" foi acusado de ser fascista por jornalistas, cineastas e intelectuais de esquerda em geral. "Meu nome não é Johnny", salvo engano (não li muitas críticas ainda) é considerado politicamente correto pelos mesmos que massacraram a obra de José Padilha. As razões dessas avaliações tão diferentes são muitas e certamente merecem um texto mais ambicioso que este. Quero ficar aqui apenas com a recepção do público, que é a mesma (positiva, proporcionando belas bilheterias para os dois filmes), embora os dois finais – do ponto de vista dos traficantes – sejam completamente diferentes.

Em "Tropa de elite", o traficante é morto com um tiro de 12 na cara (para prejudicar o velório); em "Meu nome não é Johnny", o traficante não só sobrevive, como se transforma num cidadão "do bem", capaz de relatar suas memórias e servir de exemplo para outros "ingênuos" do mundo das drogas. E a conclusão é óbvia: o público aprova que um traficante favelado, ignorante e sarará seja executado sem direito a prisão, advogado de defesa e julgamento; e aprova também que um traficante de classe média alta, culto e branco seja preso, tenha advogado e um julgamento cheio de lágrimas e arrependimentos. A classe média conhece bem seus paradoxos e não faz questão de disfarçá-los.

Há uma outra questão. Os traficantes de "Tropa de elite" são bandidos tradicionais, violentos, perigosos. E, se não fossem tudo isso, jamais seriam traficantes numa favela. Para enfrentá-los, só o BOPE e a lei do cão. Não há segunda chance. Em "Meu nome não é Johnny", João Guilherme afirma em seu julgamento que não é bandido, é apenas alguém que não sabia onde estava se metendo. Para ele, a lei dos homens e a possibilidade de redenção. Estranho… A lei não deveria ser igual para todos? Todo mundo sabe que não é – e os dois filmes, juntos, formam um belo retrato dessa disparidade -, mas uma coisa é perceber e refletir sobre essa versão carioca da sociedade de castas. Outra é aplaudi-la.

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