O cinema dos Domingos e o cinema das Segundas

Para Domingos Oliveira, cinema é, antes de tudo, arte. Para os distribuidores, cinema é, antes de tudo, o número de espectadores nas salas, consultado religiosamente nas segundas-feiras. É óbvio que o cinema é as duas coisas, e o Domingos sabe disso. Mas a ênfase num dos pólos faz  muita diferença. Ele escreveu um belo texto no Globo do dia 26 de janeiro, com o título de “Uma nova receita para o cinema brasileiro”, e o objetivo principal deste post é fornecer o respectivo link. Aí vai.

O texto já teve repercussões. Os cineastas José Joffily, Murilo Salles e Lucia Murat filiaram-se às colunas de Domingos e escreveram, no dia 29, o texto “Direito à diversidade”. Veja aqui.

Lembrei imediatamente do Alberto Salvá, que há muito tempo tem demonstrado pela internet todo o seu inconformismo com as atuais regras de produção do cinema brasileiro. Ora, se cinco nomes consagrados – ou alguém aí duvida que Domingos, Joffily, Murilo, Lucia e Salvá estão entre os GRANDES diretores do cinema brasileiro? – expressam suas dificuldades para exercer sua arte (e sua profissão), é óbvio que tem alguma coisa errada com nossas leis de incentivo e com nossa atual estratégia pública de financiamento e circulação de filmes.

Daqui da França, vou dar o meu modesto pitaco,  considerando o cenário que me cerca. Em primeiro lugar, basta olhar a programação das salas para verificar que o cinema de Hollywood também é muito forte por aqui. Os blockbusters têm campanhas de marketing extraordinárias e ocupam muitos cinemas. Mas – graças a uma legislação que começou a ser estabelecida depois da Segunda Guerra Mundial e está em constante revisão e aperfeiçoamento – os filmes norte-americanos dificilmente ocupam mais da metade do mercado. O cinema francês é muito forte e briga de igual para igual. “Gainsbourg” está em centenas de salas. “Oceans” – um documentário! – a mesma coisa. Isso sem falar de “Complices”, um filme policial que estreou nesta semana, que tem seus cartazes espalhados em todas as estações de metrô.

Não sei se o Domingos diria que estes filmes são de arte. Provavelmente não. Eles têm grandes orçamentos de produção e marketing. Mas os pequenos filmes franceses, com orçamentos equivalentes aos brasileiros médios, também estão em cartaz. A maioria, como no Brasil, não se paga. Arte é assim. Às vezes não se paga. Ou, quando se paga, o artista não recebe, porque já morreu, ou porque fez acordos comerciais errados. Mas o Estado continua investindo pesadamente na arte e nos artistas.

Aí aparece, tanto na França como no Brasil, uma distorção. Há uma procura constante por novos cineastas, aqueles que ainda não conseguiram fazer seu primeiro longa. No Brasil, isso está presente nos editais de produção, que estabelecem cotas para estreantes. Na França, há editais específicos (e de vários tipos) para jovens diretores. Tanto que, por aqui, fazer o primeiro filme é mais fácil que fazer o segundo. No total da produção francesa entre 1996 e 2005, entre 30% e 40% dos filmes eram de estreantes; em compensação, no mesmo período, apenas entre 17% e 20% eram “segundos filmes”. Aposto que no Brasil a dificuldade com o segundo filme é ainda maior.

 

A diferença é que, na França, cineastas de prestígio (os Domingos, Joffilys, Murilos, Lucias e Salvás) são considerados instituições nacionais e dificilmente ficam mais de dois anos sem filmar. Eles não precisam sempre de grandes orçamentos. O custo médio de produção de um longa francês é de 2,5 milhões de euros. Como 75% dos investimentos (públicos e privados) são para filmes “grandes”, que custam mais de 5 milhões de euros, é óbvio que há uma grande quantidade de “pequenos filmes”. Estes, ao contrário do Brasil, sempre entram em cartaz – mesmo os de produção mais modesta – e encontram seu público. Eric Rohmer, por exemplo, sempre foi um cineastas “pequeno”, mas nunca parava de produzir.

 

A grande maioria dos cineastas franceses dependem do Estado. A independência é uma ambição, um horizonte distante, e não uma regra, ou uma necessidade. Cinema industrial é para poucos. Pelo que entendi, praticamente para um só: Luc Besson. Os orçamentos combinam fontes diferentes, mas a participação das TVs é fundamental.  Elas colocam dinheiro principalmente em projetos que não conseguem se pagar, mas contribuem com o que Domingos Oliveira chama de arte: “Aquilo que lembra os homens dos seus melhores valores”. Isso não impede que as TVs também invistam em filmes “grandes”. É uma questão de ênfase, de prioridade. Lembrem que, na França, existe um conceito chamado “exceção cultural”: nem todos os produtos são julgados pelos seus resultados econômicos, o que se reflete, principalmente, nas barreiras impostas ao número de filmes norte-americanos que chegam nas salas.

E aí chegamos à tese de Domingos. No Brasil, hoje, há uma obsessão pelo mercado, pelo filme que se paga, pela suposta formação de um ciclo auto-sustentável. Na prática, as empresas produtoras jamais bancam seus filmes e raramente têm algum lucro. Os cineastas, quando defendem um sistema de financiamento público, com direito à diversidade cultural e geográfica, muitas vezes são acusados de querer “mamar nas tetas do Estado”. Na França, que inventou o cinema, que é o país europeu que mais produz filmes, que trata seus cineastas como grandes artistas, também não há um cinema industrial. Há um cinema nacional forte, orgulhoso, que admite suas dificuldades, mas jamais se curva para os números das segundas-feiras.

Por uma razão óbvia: sem Domingos, não há Segundas. 

 

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