Direitos autorais (6) – Final

Na história recente das legislações referentes à atividade audiovisual no Brasil, há dois episódios que se complementam e que permitem mais uma reflexão sobre as práticas do Direito e da Justiça no Brasil. O primeiro aconteceu ainda no governo Fernando Henrique, enquanto o segundo está localizado no governo Lula (no fim do seu primeiro mandato, e já em clima de campanha para o segundo). Nossa fonte para o primeiro episódio é uma entrevista do atual (agosto de 2007) Secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, Orlando Senna, para a revista on-line "Observatório do Direito à Comunicação" (CARVALHO, 2007).

Senna conta que o Gedic (Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria do Cinema, órgão criado pelo governo FHC) estava articulando a criação de um órgão capaz de regulamentar o setor audiovisual (cinema, TV e novas tecnologias digitais afins). Havia, supostamente, uma grande preocupação do governo para que essa discussão acontecesse em caráter reservado, pois ao mesmo tempo se discutiam, no Congresso e fora dele, outras leis, direta ou indiretamente relacionadas com o audiovisual. De acordo com o relato de Senna, tudo foi por água abaixo quando um personagem misterioso apareceu:

 

"Só como anedota, nós temos, na história do cinema brasileiro, o que costumamos chamar de a ‘Noite do Delete’. No último encontro de discussão do Ministro Pedro Parente com o Gedic e seu subgrupo de cineastas (Carlos Diegues, Luiz Carlos Barreto, Luiz Severiano Ribeiro Neto, Rodrigo Saturnino Braga, Evandro Guimarães e Gustavo Dahl, coordenador), quando estava encaminhada a formulação da proposta para a criação de uma Agência do Audiovisual, desceu alguém de um helicóptero e teve uma conversa com o próprio Fernando Henrique. Começaram então uma série de contra-ordens ao pessoal que estava trabalhando na formulação da agência e o próprio ministro Pedro Parente começou a ‘deletar’ tudo o que se referia à televisão. A ‘noite do delete’ ilustra como a coisa era reservada!" (SENNA, apud CARVALHO, 2007)

Quem era o passageiro do helicóptero e como ele ficou sabendo o que estava acontecendo nas discussões do GEDIC? Provavelmente nunca ficaremos sabendo. Mas uma coisa podemos supor: ele tinha ligação com as emissoras de TV, e estas não aceitaram dividir com o cinema uma mesma legislação. O resultado é que a tal "Agência do Audiovisual" foi sepultada, para dar lugar a uma Agência Nacional do Cinema (e apenas do Cinema), conhecida hoje como ANCINE.

Com a eleição de Lula, e o sentimento de que havia vontade e força política para finalmente enfrentar os poderosos passageiros de helicópteros, o assunto voltou à pauta. Novas reuniões das entidades, novas discussões, novos projetos de lei. Chegou-se a uma proposta de criação da ANCINAV, que, entre outras coisas, acenava com a modificação de dois artigos da Lei dos Direitos Autorais (o 86 e o 99):

 

Art. 129. O art. 86 da Lei no 9.610, de 1998, passa a vigorar com a seguinte redação, sendo-lhe acrescidos os parágrafos 1º e 2º:


"Art. 86 Os direitos autorais de execução pública das obras audiovisuais serão devidos aos seus titulares pelos responsáveis dos locais ou estabelecimentos a que alude o parágrafo 3o do Art. 68 da Lei n. 9610, de 1998 que as exibirem, pelas emissoras de televisão que as transmitirem e por qualquer outra forma analógica ou digital de comunicá-las ao público.


§ 1º Os valores devidos pelos responsáveis pelo pagamento de direitos aos titulares de direitos autorais e conexos das obras audiovisuais não serão superiores a um total correspondente a 1% (um por cento) da renda bruta, menos os impostos, auferida pela exibição das obras audiovisuais e cinematográficas.


§ 2º Compete à Ancinav regulamentar a arrecadação e distribuição, em comum, dos direitos relativos à execução pública das obras audiovisuais, inclusive por meio da radiodifusão e transmissão por qualquer modalidade. (NR)"


Art. 130. O art. 99 da Lei no 9.610, de 1998, passa a vigorar com a seguinte redação:


"Art. 99. As associações manterão um único escritório central para a arrecadação e distribuição, em comum, dos direitos relativos à execução pública das obras musicais e lítero-musicais e de fonogramas, excetuadas os direitos relativos à execução pública de obras audiovisuais."

 

Resumindo: era uma tentativa de estabelecer um percentual de arrecadação de direitos autorais compatível com a realidade do mercado (um por cento para cada co-autor previsto em lei, num total de 3%, e não 7,5%, como propunha implicitamente o ECAD), e dava à ANCINAV a prerrogativa de regulamentar a arrecadação, afastando o ECAD do processo. Com certeza esta não era a solução do problema, mas era um avanço. O processo de desconstituição das leis que criariam a ANCINAV é mais uma tarefa para os historiadores do poder. Acusada de "stalinista" e "autoritária" (termos amenos, perto de outros que foram usados), por grande parte da imprensa brasileira, o seu o linchamento público foi gradual e certeiro. Depois de poucos meses de debate, sempre pautado pelos grupos hegemônicos do setor de comunicação de massa (e poderíamos colocar o ECAD entre eles), a ANCINAV também teve a sua "noite do delete" e saiu de cena.

É claro que a questão dos direitos autorais é apenas uma parte dos inúmeros problemas que a ANCINAV pretendia enfrentar. Mas, como vimos nos outros exemplos deste ensaio, a indústria audiovisual e seus mecanismos de poder econômico e político estão sempre relacionados com as questões da remuneração da criação artística. Houve, em algum momento, no decorrer da campanha de Lula para o seu segundo mandato, uma acomodação de forças, e o governo decidiu recuar da criação da ANCINAV (e, de tabela, da retirada do ECAD da cobrança de exibição pública de músicas nas salas de cinemas) e acenar para uma futura regulamentação geral do setor de Comunicação, incluindo aí a multibilionária indústria de telecomunicações, que tem segmentos tecnologicamente inovadores (telefonia celular e internet), capazes de incomodar, a médio prazo, o mercado tradicional de TV.

Concluímos lembrando que, em todos os casos estudados – que vão desde a criação dos direitos autorais para a fotografia, na França, em meados do século 19, até as recentíssimas "noites do delete" em território brasileiro, passando pela questão da "pirataria" – o debate legal e jurídico nunca aconteceu separado de forças pragmáticas, cotidianas, que atuam em pelo menos três níveis. O primeiro, e mais evidente, é o jogo político e econômico que envolve os poderes Executivo e Legislativo, em especial nas negociações eleitorais. O segundo é a articulação, também muito conhecida, dos discursos da mídia (especialmente a televisão), sempre que as empresas hegemônicas se sentem ameaçadas com alguma regulamentação que julgam nociva.

O terceiro – muito mais sutil, e por isso mais eficiente – é aquele que acontece no campo das "práticas do direito", que se transformam em "práticas de coerção", executadas ao abrigo da lei, mesmo que sejam evidentemente imorais. Estas práticas são criadoras de um "regime de verdade" que vai se impondo e contemplando os interesses da indústria audiovisual, mesmo que tenham sua origem em supostos interesses dos autores, que não passam de coadjuvantes.

É importante lembrar que estas práticas acontecem no próprio campo da legislação, e, portanto, seus efeitos são estratégicos, de médio e longo prazo. Para dar conta destas práticas, é preciso não apenas conhecer a legislação, como também acompanhar algumas ações que tramitam na Justiça brasileira. Como cremos ter demonstrado, a análise crítica e histórica, de cunho acadêmico (e, no nosso caso, de base foucaltiana), permite ver com mais clareza o que tem acontecido na sombra. Em pesquisas futuras, pretendemos abordar outras questões dessa ordem, e em especial o grande desafio imposto pelas novas tecnologias: como o "autor" poderá viver de seu trabalho num mundo em que a circulação de suas obras parece escapar de todas as tentativas de regulamentação, tanto de base técnica, quanto de base legal?

 

 

 

 

 

CARVALHO, Eduardo. A "noite do delete", ou quando a Ancinav reduziu-se a Ancine. Observatório do direito à comunicação. Disponível em:

 

<www.direitoacomunicacao.org.br/novo/content.php?option=com_content&task=view&id=912>. Acesso em: 28 ago. 2007.

 

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