Desconectados 6: A Visão do ex-casal sobre a questão dos filhos

 

Capítulo 6 – A questão dos filhos

1. segundo Guto

Não ter conseguido ter filhos talvez fosse nosso maior problema. Pra Marta mais que pra mim. Eu acho que poderia adotar uma criança numa boa e continuar sendo feliz com ela. Mas Marta não quis nem saber da adoção. Eu gostaria de  experimentar o quanto é possível criar um ser que saiu de uma mãe subnutrida, talvez vítima de espancamentos domésticos, e fazer com que ele se sinta tão amado que nada da sua origem tivesse qualquer significado real.

Marta dizia que eu queria pegar uma criança para fazer um tratado antropológico em cima. Uma tese acadêmica sobre todas as oportunidades que surgem para um bebê carente que troca o seu ponto de partida miserável  por um meio educado e rico. Falava que eu estaria muito longe de amá-lo como um filho. Mas eu sei que poderia amá-lo de verdade. Se fosse um menino, eu levaria no estádio Olímpico e o faria ajoelhar e jurar amor eterno ao Grêmio, enquanto o cobriria de chuteiras, calções, bolas e camisetas de todos os modelos.

Dizer isto para Marta já provocou uma boa duma briga:

– Gremista fanático e doente. Quem tem que decidir o time é a própria criança.

– Influenciar um pouco na escolha do time não mata ninguém. Imagina se eu afrouxo e ele vira colorado. Aí a adoção vira um fracasso.

– Que absurdo. A criança, quando virar adolescente, periga entrar pra uma torcida organizada e virar um fascistinha sem nada na cabeça, só viajando com o time pra cima e pra baixo. Mais ou menos o que teu irmão faz.

Essa foi demais pra mim:

– Melhor a criança andar como meu irmão do que imaginar o que a tua mãe vai fazer com ela. Já vai sair batizando, botando correntinha com crucifixo e, aos 7 anos, querendo que ela entre pra catequese.

– Eu não vejo problema nenhum em mostrar um caminho espiritual pra criança.

– Mostrar é uma coisa. Incutir na marra é outra.

– Igualzinho ao futebol. Cada um puxando pro seu time. Acho melhor mostrar um caminho religioso seguro, porque, se a criança fica totalmente solta no plano espiritual, qualquer seita fajuta leva ela. E as seitas tão bombando na cidade. É melhor fazer parte de uma religião grande, com normas estabelecidas, do que participar de um micro-grupo de fanáticos.
  
– O problema são exatamente as normas estabelecidas. Idéias velhas como a Terra, que não servem mais pra sociedade. Transatlânticos religiosos.

– Pelo menos em religião grande dá dinheiro quem quer. Imagina se a criança entrar pra essas religiões que levam todo o teu dinheiro durante a missa. Outro dia o nosso dinheiro foi parar numa dessas igrejas. O salário que pagamos pra minha secretária foi dado para um tio que estava reformando a casa dela, que deu inteirinho pra igreja, pra se limpar de todos os pecados. E ainda pior foi a Carol, que me contou que a tia dela foi até a Índia pra ver um monge famoso, que é chamado de avatar, que expele pepitas de um metal pela boca. Tu não vê a pepita saindo, mas sente de longe. Tu pode comprar as pepitas na lojinha. A tia dela comprou.

Às vezes Marta conseguia conversar racionalmente sobre religião, mas em outras era bem beata. Devia ser sua genética, com aquela mãe que até igreja já construiu.

Tudo bem. Eu sigo completamente descrente, triste, mas fanático pelo Grêmio.

2. segundo Marta

Acho que meu problema real com Augusto foi que a gente não conseguiu ter filhos. Um filho só já chegava. O que realmente a gente precisa fazer para que as sementes se juntem e germinem, meu Deus? Parece tão simples, mas, pra quem não consegue, o universo inteiro é o problema. Eu pirei tanto pensando nisso . A análise não adiantou nada, porque eu saía da porta do consultório e já olhava a primeira mãe que passava de mão com uma criança e ficava pirando. Tudo que eu queira era passear de mão com um filho que me perguntasse: "Mãe, o que vem depois da primavera, o inverno?" "Mãe, por que os donos das carroças dão de relho nos cavalos?" Eu ficaria dez minutos respondendo a qualquer pergunta ingênua que ele me fizesse. Seria uma mãe dessas bem tontas. Depois eu o ajudaria no banho, faria lanches, compraria brinquedos, mimaria totalmente a criança.

Mas não. Conosco não aconteceu. Deve ser algum karma que tenho que pagar de outra vida, porque nessa eu não fiz nada de tão errado pra merecer essa infelicidade. Nem aborto eu fiz. Com 20 anos eu não pensava absolutamente em ter filhos, mas, com 30, a necessidade ficou insuportável. O Guto queira um menino pra jogar bola com ele, levar no campo, ler estórias. Ou uma menina que seria a namoradinha dele, desse bicotas em troca de bonecas. Eu queira também saber como seria a carinha da criança. O quanto ela seria parecida comigo de rosto e de corpo, se o sorriso dela lembraria o meu.

Eu chorei e chorei, me lamentando, rezando, pedindo, até que desisti do nenê. Não era pra mim. Me sentindo muito derrotada, desisti também do Augusto. Não que eu quisesse culpá-lo, pois os médicos disseram que nós dois somos férteis. Mas ficou impossível de conviver, tamanha a frustração. Ficou aquela sensação de cada um que tente com outro parceiro. Quando tu faz muito sexo pensando em ter filhos, acho que tu perde muito da sensualidade. E foi isso que aconteceu. Duas pessoas amargas, inteligentes, rancorosas, chatas, cheias de mania, se separando.

Pra ele ainda foi pior que pra mim, pois perdeu a boquinha. Mas para mim também doeu muito, pois às vezes ele era um companhia muito boa e animada. Mas fazer o quê? Quando esgota é melhor ir saindo fora, enrolando o tapete, vendo qual livro é de quem. Às vezes me sinto abandonada. Já dei umas namoradas enquanto espero meu novo amor, que talvez finalmente me encha a barriga e me sacie o espírito.

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