Desconectados 2: Marta relembra

Capítulo 2 – Marta relembra

Nem tudo foram espinhos, houve urtigas também. Fomos pra cabana na serra de um amigo dele, num final de semana. O combinado era o Guto ir dirigindo, já que eu estava virada porque tive que entregar uma avaliação de mercado que levou toda  a madrugada e que se eu não terminasse me impediria de desfrutar um  maravilhoso uiquende a dois.

Quando chegou no pedágio, ele começou a ter dor de barriga. Eu disse: são gases. Ele disse: deve ser apendicite. Não teve jeito, as dores foram aumentado e aumentando, eu tive que assumir a direção do carro. Quando nós passamos por um posto de gasolina, ele quase se jogou do carro atrás de um banheiro. E a apendicite escapou pela privada. Nem assim, com um vazio no intestino, ele se animou a dirigir o carro, pois estava fraco de tanta evacuação. Em suma, fui dirigindo até a serra, e ele ainda quis parar para comprar um refrigerante e lenha para a lareira, já que estava esfriando muito.

Chegando na casa realmente estava frio. Descarregamos. Eu já semimorta, pois não consigo mais virar a madrugada sem conseqüências maiores. Vou pra cama o mais cedo possível. Ele foi ficando na sala para examinar mais dois projetos que estava desenvolvendo: um de uma casa que ia ser construída na praia e outro de uma reforma numa cozinha. Eu já conhecia os dois projetos, pois tinha dado opiniões variadas na cor das janelas, na textura dos azulejos, no brilho do piso, no formato do telhado, no orçamento que ele tinha dado para o trabalho dele e na compra do material. Merecia pelo menos que, naquela hora, ele me acompanhasse e me aquecesse naqueles lençóis frios e com cheiro da banana que ele comeu na viagem.

Ele alegou que, como eu estava cansada, ele ficaria mais um tempo trabalhando e depois iria dormir. Só que estava muito frio para ele trabalhar. Guto tentou acender a lareira e não teve jeito. Ele esfriava até fogo. Usou todos os fósforos e jornais da casa e não conseguiu  atear fogo naquela lenha meio úmida. O Guto então teve a coragem de  pedir: Marta tu não dá um jeito neste fogo, coisa que tu faz tão bem?

Que elogio mal-intencionado. Isso depois que eu já estava meio quentinha debaixo de dois cobertores, apesar do frio no quarto. Eu daria a minha vida para estar naquele momento com um correntão que já tivesse sido escoteiro e que soubesse acender uma lareira. Que fizesse churrasco na chuva e montasse barraca em cômoro de areia. Em vez disso, eu estava com um arquiteto com doutorado que nem isqueiro tinha trazido.

Eu, como boa Maria, fui achar um fósforo de hotel que eu sempre guardo na mochila e, rasgando revistas velhas, fui aquecendo aquela madeira. Consegui um fogaréu que esquentou até o banheiro da casa. Com este aquecimento todo, perdi o sono e o frio, e como recompensa acabamos transando em frente à lareira. Tenho que admitir que estava bom. Uma brasa caiu no tapete que usamos no chão e fez aquele furo. Tivemos que deixar o tapete com uma ponta escondida em baixo do sofá para disfarçarmos o acidente.
 
Acordamos levemente apaixonados e famintos no dia seguinte. Ele foi pegar o carro para comprar o café da manhã na vila. Mas, na hora de ligar o carro, nem sinal. Foi-se a bateria. Tentamos fazer pegar na lomba e nada. Não gostou do frio ou do ar da serra. Era o carro dele, pois o meu não me deixava na mão. Eu pensei que ele ia pedir que eu examinasse o carro, já que eu fazia tudo mesmo. Eu só não produzia os seus líquidos mais particulares, como xixi, cocô, sêmen.  O banho ele também tomava sozinho. Mas a comida e a bebida que provocavam estes efeitos fisiológicos, era eu quem providenciava.

O sêmen, devo admitir, era também estimulado pelas imagens de centenas de mulheres nuas em poses sensuais, que o Guto estava sempre vendo na internet. Assim, toda aquela libido que ele gastava comigo talvez fosse provocada pela imagem de outra, mesmo quando ele falava barbaridades pretensamente eróticas no meu ouvido.

Ele nunca berrou nem sussurrou meu nome transando. Só em filmes eu vi esta estória de dizer o nome de alguém enquanto transa. Não tive ainda essa sorte. Acho que ninguém diz mais o nome de ninguém para não errar a pessoa. Acho que ouvir o nome de outra pessoa enquanto está transando deve ser o fim de qualquer relação. Mas, se essa  não foi a causa da nossa separação, aquele final de semana pesou no relacionamento.

Ficamos uma hora discutindo sobre a falta de cuidado dele com o carro enquanto esperávamos o socorro mecânico na varanda da casa, o que  levou no mínimo duas  horas. Por que tu nunca troca o óleo, não calibra os pneus, não faz revisão, não bota água, e bah, bah, bah? Carro consertado, colocamos todas as nossas coisas pra dentro e voltamos pra cidade. Comendo o resto das bananas na estrada. Pelo menos teve o furo no tapete.

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