Desconectados 1: Relato dos últimos dias de um casal que era feliz

 
Capítulo 1 – A versão de Marta

Hoje sou solteira porque me cansei de repartir minha vida achando que a única coisa que eu estava repartindo era a cama. E pra que repartir cama, quando tu pode ter ela inteira só pra ti, sem ronco, sem outro corpo ao teu lado, que pode estar gripado, suado, alcoolizado, chapado, irritado, cansado, operado, sodomizado, adulterado, clonado. Se tu dorme sozinha, tu vai ter que trocar menos os lençóis, menos líquidos, aromas e empregadas. Tu pode dormir de calcinha branca de algodão dois tamanhos a mais, com camisola de ursinhos, não precisa usar lingerie preta, mini-calcinhas apertadas vermelhas, espartilhos ridículos, sapato de salto de bico fino. Tu também pode dormir pelada , com os peitos caídos, a barriga solta, as nádegas esburacadas, com a axila por depilar. Pode ficar lendo a noite inteira, se masturbar, meditar, cantar e ninguém vai perguntar que raios tu tá fazendo. Tu enlouqueceu? Pode trazer uma amiga pra dormir na tua cama sem o carinha achar que tu tá virando lésbica. Não precisa nunca mais ver filme pornô de tabelinha, nunca mais ouvir futebol da gaúcha, e principalmente o sala de redação, ou, o que é pior, ouvir de longe os gols do fantástico, de longe porque a tv do quarto eu já tinha eliminado faz tempo. No dia em que eu tirei a tv do quarto, sob protesto total, eu me senti a mulher maravilha, a senadora do acre, joana d`arc, olga benário. Depois foi a vez de tirar o computador e o monitor imenso dele. Agora tenho este lap-top, que também deixa a sua energia no ambiente, mas pelo menos é o meu computador.

Deixei ele levar todos os livros, fitas, cds, dvds, e qualquer tipo de mídia que venha a ser lançada, toda a adega, louças especiais, o melhor pc, o ipod, alguns tapetes orientais. Mas o cofre ficou comigo, porque ele não sabia nem direito o que tinha guardado ali dentro. Mas também fui eu quem ganhou a maior parte do dinheiro em conjunto, direta ou indiretamente, com meu talento pros negócios. Se ele fosse o gestor financeiro da casa, estaríamos morando com minha mãe, o que seria horripilante, com a mãe dele, o que seria insuportável, ou em algum apartamentinho alugado do centro da cidade. Um jk numa zona onde os vizinhos ganhariam a vida à noite e dormiriam de dia, e nós os encontraríamos apenas no elevador do prédio. Nós saindo, de banho tomado, e eles fedendo a bar, boate, guarita. Cheiro de fritura, misturado com cigarro e bebida, de desodorante barato vencido em cima de camisa de tecido acrílico, de lugar fechado, de perfume enjoado.

Nos domingos à tarde, todos ouviriam programas populares na tv e os poucos que estivessem lavando roupa no tanque ouviriam radinho de pilha. Alguns teriam gatas gordas castradas que rosnariam para os poodles das prostitutas de unhas vermelhas descascadas. Nosso elo de ligação seriam as formigas que, levando micro-organismos, passariam de um aposento ao outro, conhecendo profundamente a cozinha de cada um dos moradores, passando por restos de galinha assada em fornos rotativos, torradas de mortadela com maionese, ossos roídos de chuleta, palitos chupados de churrasquinho vendidos nas esquinas, casca de ovos entupidos de hormônios, pastéis com guizadinho. Já as baratas, segundas na cadeia de pequenos insetos comuns a todos no prédio, se deliciariam com restos açucarados de coca e guaraná, cervejas chocas, limões murchos de caipirinhas dormidas, lamberiam muito café doce em copos e chícaras de vidro marrom, nadariam em leite talhado com achocolatado. E os mosquitos ficariam excitados em picar peles tão mal-cheirosas, tendo que achar um pequeno poro entre tanta gordura armazenada em corpos que refletem o tamanho exato da ignorância de seus donos, alicerçados por anos de sedentarismo social, discriminação de raças, fanatismo de credos.

Mas não posso descontar nos vizinhos. O problema é meu e dele. Como ele casou comigo, uma economista phd, ele teve a honra de morar nesta casa que também tem formigas grandes e pequenas, que o caseiro combate passando veneno o tempo todo, o que não resolve absolutamente nada. Caseiro que ainda por cima limpa a piscina, lava os carros, faz jardinagem e pequenos consertos, separa e carrega o lixo. E, o que é melhor, recebe apenas como auxiliar de serviços gerais. Com esta crise de emprego, tu consegue, por um salário, mais passagem, uma empregada que faça a faxina, cuide das crianças, cozinhe, costure, faça cabelo, pinte as unhas e talvez até arrisque uma pequena massagem nas tuas costas, se ela for habilidosa e tiver nascido pra isto. Talvez ela te bote na justiça por acúmulo de função, mas isto é talvez.

Além da empregada e do caseiro, ele também desfrutava da nossa cozinheira, que sabia exatamente o que ele gostava e no ponto que ele gostava. A macarronada tinha que ser al dente, com molho de tomate e manjericão sempre fresco, que ela pegava no pátio. Se o tomate não fosse depelado antes, e ele encontrasse uma pelezinha no molho, já reclamava. Veado. O camarão tinha que ser médio, não poderia ter o menor sinal de grãozinho de areia, como teve uma vez, e ele respondeu que se ela desconfiasse que tinha areia, ela que passasse um aspirador de pó nestes moluscos cor de rosa. Assim ó, bota a peneira em cima do camarão e bota o aspirador em cima da peneira. Gênio. Por que não patenteou a idéia? A panqueca tinha que ser grossa, ele não admitia que a panqueca se desmanchasse quando ele botava o garfo, antes de cortar com a faca e o espinafre saísse para fora. O molho branco tinha que ser de maizena porque ele não gostava deste molho feito com farinha e leite. Uma vez ela errou a garrafa e comprou refri diet:

"Tu tem idéia da diferença de gosto de uma coca diet para uma normal?"

"Não, seu Guto."

"Leva esta pra tua casa, bebe inteira, e vê se percebe a diferença."

Cabron e grosso. Descontava na faxineira. Era demais.

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