De Londres, São José do Norte e Céu de Maria

Londres continua linda e maravilhosa para quem gosta de qualidade de vida e tem muita bala na conta para queimar. Não é uma cidade com os respingos socialistas de Paris, onde os adolescentes entram de graça em todos os museus e têm desconto em todo o mundo artístico. Não tem os abundantes restaurantes franceses, mas, numa mesma noite, tu pode escolher entre ver Hole, Babyshambles ou Depeche Mode, além de umas 20 bandas novas de rock . Tem Billy Elliot na esquina, para o delírio dos fãs deste super musical, em que os gordos dançam como Baryshnikov. Trânsito totalmente parado, metrô a 13 reais, táxis ótimos e caros. A Millenium Bridge, em frente à Tate Modern, é uma das obras mais loucas da arquitetura mundial, com as curvas compondo total com a Catedral de Saint Paul. Ainda por cima, ela é de madeira, de nossas florestas provavelmente, pois não parece ser de reflorestamento.
 
 
Bares classudos, turistas em excesso, comerciais inteligentes, livrarias primorosas. Nossa entrada na Grã-Bretanha quase não acontece por causa da federal. Passei exatamente pela mesma situação há 30 anos, quando entrei pela primeira vez nesta ilha elitista:
         
            – Vieram fazer o quê?
            – Turismo, férias, compras, arte, a pqtp.
            – Podem mostrar a passagem de volta para o Brasil?
            – Está em Paris.
            – Podem mostrar a passagem de saída do Reino-Unidos-Venceremos-Todos-Latino- Americanos?
            – Está aqui no meu computador ou no meu pen-drive, se o senhor tiver onde plugar.
            – Não, deixa pra lá. Eu estou perguntando tudo isto para agradar o meu supervisor que está ali. A simpática família não tem nenhuma passagem impressa, nem o voucher do hotel?
            – Tudo está no pen-drive. O senhor não sabe que é totalmente antiecológico pedir a passagem impressa para os turistas?
           
Minha família gelou por instantes, com aqueles olhares de repreensão que já conheço, que dizem:
 
            – Mãe, tu é louca.
            – Sim, eu já sou louca, então eu não corro o perigo de ficar louca.
            – Entrem, por favor, disse o policial. Sejam bem-vindos.
            – Ainda bem. Eu já ia telefonar pro Shakespeare reclamando, pensei.
 
Mas a vida é hard-rock, com alguns momentos românticos. Tento viajar com o mínimo de desconforto para o Brasil, em uma viagem de 20 horas, e ela de repente se materializa em 57 horas de aeroportos e vôos, com direito a cancelamentos simultâneos por ventos, greves e tempestades, com passageiros chorando, atendentes inexperientes, companhias aéreas surreais, humilhação de velhos e pobres. Quem só tem a grana contada para a volta passa fome e dorme sentado nas desconfortáveis cadeiras do aeroporto. As ricas e inconsequentes cias. aéreas não tem mais a responsabilidade de pagar comida e hotel para os passageiros em atraso quando o problema for climático, o que acontece o tempo todo na era do aquecimento. Tivemos que emprestar computador com internet, revistas, oferecer salgadinhos para pessoas em visível situação constrangedora.
 
Chego no Brasil aos pedaços para encontrar uma equipe japonesa que veio filmar nos pampas. Quase dois anos de conversação, com eles achando que eu podia ser uma brasileira espertinha, e eu achando que eles podiam ser da yakuza. Nosso encontro, contudo, foi uma das mais elevadas uniões de povos em cima de um trabalho comum que já vivenciei. O frenético ritmo japonês, às vezes excessivo, associado ao nosso conhecimento da região e dos hábitos de nosso povo, às vezes surpreendentes, rendeu uma obra de arte de imagens e sons instigantes. O mais incrível: a equipe idealizadora era formada por simpatizantes do movimento punk. Destino. Minimalismo, técnica, cenários e paisagens vistas sob a ótica oriental, com direito a delírios poéticos e tempos subjetivos. Tudo isto somado a índios, gaúchos, emas, estradas e, principalmente, aos molhes.
 
Se fizer um furo na cidade deles no Japão, atravessando o globo, sai em São José do Norte no RS. O personagem traz as cinzas de seu amigo para serem jogadas dos molhes. Tudo seria simples, se o mar não estivesse com uma ressaca violentíssima, com ondas imensas, que fez o barco entrar de bico na base das vagas, com parte da equipe desmaiando, chorando, gritando, ao tentar contornar o molhe leste. Consegui que a comida chegasse seca nos molhes, vinda de um trapiche distante, com uma lancha de jovens mergulhadores prestativos. Acabou a farra com todos queimados do sol, salgados do sal e repletos de emoções. O carismático capitão do rebocador , que parecia um nórdico inchado, disse:
 
           – Vocês queriam emoção e levaram. Disneylândia!
 
Abro o jornal no aeroporto e vejo que o cartunista Glauco foi assassinado junto com seu filho. Muito triste e muito louco. O Glauco era um profeta para os seguidores do Daime. Juntava cerca de 300 fiéis em suas pregações alucinógenas. Me parece muito o assassinato de Lennon, com uma pessoa que não suportou a fama de outro. Alguma confusão era esperada, porque sua seita Céu de Maria funcionava no pátio de sua casa. Não tem como controlar a mente de tanta gente alucinada. Os mais perturbados desvirtuam total. O Daime não deixa por menos, para o bem ou para o mal. Um golpe profundo para os fãs de Glauco e principalmente para um jovem de 25 anos. O Geraldão está de luto.
 
Acho que está na hora de voltar para Paris. Lar, doce lar.        
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