Carne

          

O caminhão havia tombado na pista direita da BR-116, sentido interior-capital, pouco depois da entrada do zoológico. Normalmente seria um trabalho rotineiro para os policiais rodoviários – atender o motorista moribundo, fazer um desvio para o trânsito, chamar um guincho para retirar o veículo acidentado -, mas eles tinham pedido ajuda para a Terceira DP, e o Xavier me mandou pra lá às cinco da tarde numa viatura dirigida pelo Eliéser. Com a sirene ligada e usando o acostamento, conseguimos vencer o engarrafamento em meia hora. Assim que chegamos percebemos o motivo do pedido de socorro: o choque com um carro pequeno, na origem do acidente, havia aberto a porta traseira do caminhão, e, enquanto ele cambaleava pela estrada, já sem controle, a mercadoria se espalhara por mais de cem metros.

O caminhão, do tipo baú, não era frigorífico, mas estava abarrotado de carne. Obviamente vinda de algum abate clandestino perto dali e destinada aos açougues de Porto Alegre. Pedaços grandes de boi permaneciam sobre o asfalto, no meio dos carros trancados no congestionamento, e tinham atraído dezenas de pessoas das imediações, algumas delas segurando discretamente facas e sacolas, esperando o melhor momento para cortar um naco de carne para o jantar. Os policiais rodoviários estavam ocupados demais com a operação de resgate do motorista, preso nas ferragens, e com a orientação do trânsito e não podiam segurar aquela turba cada vez maior de esperançosos churrasqueiros. Um capitão da PRF veio explicar a situação:
“O motorista tá mal, perdeu muito sangue, e não estamos conseguindo retirá-lo das ferragens. Fizemos um desvio, mas os carros diminuem para olhar o resgate e aí tranca tudo. Ainda por cima tem essa carne espalhada na estrada. Já tivemos que expulsar dois sujeitos que estavam cortando um pedaço pra levar pra casa. Se esse pessoal todo invadir a pista, vai ser um inferno.”
“Não dá pra puxar a carne pro acostamento?”, perguntei.
“Nós tentamos, mas as carcaças são muito pesadas, exigem dois ou três homens para serem carregadas. Não temos efetivo pra isso. Por isso pedimos ajuda.”
“Deixa comigo”, garanti. “Em dez minutos eu limpo tudo.”
O capitão me olhou, desconfiado, como se a minha promessa fosse absurda, e voltou para a operação de resgate. Eu disse para Eliéser:
“Só tem um jeito de limpar essa merda: uma ação da cidadania.”
Eliéser me olhou ainda mais desconfiado que o capitão. Eu prossegui:
“Vamos usar os próprios elementos do conflito para acabar com o problema. Tá vendo aqueles dois sujeitos ali, o sarará e o gordo com um pano na cabeça?” Eliéser disse que sim. “O sarará tá segurando uma faca grande. Só não invadiu a pista ainda pra pegar um bife porque estamos de olho nele. Deve ter muito mais gente na mesma situação. Nós vamos falar com todos e dizer que não podem cortar nada na rodovia. Tem que levar pro acostamento primeiro. Quem estiver sozinho que peça ajuda. Entendeu o plano?”
“Mas isso não é ilegal? Nós não devíamos proteger o patrimônio?”
“Que patrimônio? Isso é carne sem fiscalização, sem imposto. Se não for consumida logo vai estragar. E o dono é um criminoso. Ele que se dane.”
“E se a carne já estiver estragada?”
“Porra, Eliéser, sabe a hiena, aquele animal, que come carniça e tem o estômago mais forte do planeta?”
“Sei.”
“Aposto que ela não consegue digerir o que aquele gordo com o pano na cabeça comeu no jantar de ontem.”
Depois que convenci o Eliéser da viabilidade do plano, nos dividimos pra falar com a multidão. Juntávamos um bolo de pessoas, explicávamos o que estava acontecendo e estabelecíamos a regra: tinham que tirar as carcaças da estrada e retaliar a carne no acostamento. Assim que entendiam, formavam grupos para puxar a carcaça mais próxima. Logo a estrada estava limpa, e uma festa alegre começava na beira da rodovia. Mais de duzentas pessoas, manejando todo tipo de faca, cortavam grandes nacos de carne e colocavam-nos em sacolas de plástico. Eu não podia ficar de fora. Tinha acabado de conseguir uma faca emprestada, e já estava separando meu pedacinho de alcatre, quando o capitão da PRF voltou, todo esbaforido, e me pegou em plena atividade.
“O que está acontecendo, inspetor?”
“Acabou o filé, mas acho que tem alcatre e coxão de dentro. O que o senhor prefere?”
“Esse pessoal está roubando a carne. É uma contravenção.”
“Não. Essa foi uma ação de cidadania para liberar a estrada. Olha só como agora o trânsito está fluindo.”
“O senhor quer parar de cortar essa carne?”
“Se eu parar agora, só vai me sobrar o osso.”
“O senhor não tem vergonha?”
“Não. Vergonha do quê? Olha só como o pessoal está feliz.”
O capitão olhou pra frente, viu o clima de festa que tomara conta de todo o acostamento e não conseguiu evitar uma risada. Disse:
“Essa vai ficar na história.”
“Como está o motorista?”
“Conseguimos retirá-lo das ferragens. Acho que vai sobreviver.”
“Ótimo. E então: alcatre ou coxão de fora?”
“Não tem uma picanha?”
“O senhor chegou tarde.”
“Então alcatre.”
Cortei um belo pedaço pro capitão. Confisquei alguns nacos dos que tinham as sacolas mais cheias – afinal, a ação de cidadania fora criada para incentivar o consumo imediato de proteína animal, e não para abrir açougues – e enchi o porta-malas da viatura de carne. Mandei o Eliéser tocar pra delegacia, apesar do nosso turno de trabalho estar concluído. Compramos carvão e algumas cervejas, espetamos a carne, acendemos o fogo e estávamos rezando pela pronta recuperação do pobre motorista acidentado, ao som sibilante da gordura caindo sobre as brasas, quando o telefone tocou a primeira vez. Assalto a mão armada a duas quadras da delegacia. Xavier disse que eu e Eliéser já estávamos de folga e mandou dois outros pobres coitados, salivando, cuidar do caso. O telefone tocou de novo. Roubo de carro perto do Centro Universitário Vera Cruz. Xavier, irritado, disse que era na área da Primeira DP – uma mentira deslavada – e desligou. O telefone tocou pela terceira vez. Duas gangues rivais estavam se enfrentando em frente a uma escola noturna. Já havia dois feridos a faca. A brigada estava indo pra lá, mas precisava de toda a ajuda possível. Olhamos para a carne, que estava quase no ponto, nos despedimos dela com lágrimas nos olhos e mergulhamos na noite de Sapucaia.

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