As vozes da máquina

A leitura do romance “Raízes do mal”, de Maurice Dantec, combinada com uma sessão em DVD de “2001”, de Kubrick, me fizeram pensar um pouco na evolução do imaginário que construímos a respeito dos computadores e, em especial, sobre as maneiras com que podemos nos comunicar com eles. Passados 40 anos, “2001” ainda é um filme poderoso, uma obra-prima que só poderia ser construída pela genialidade e pela obsessão de Kubrick. “Hal”, o apelido do computador assassino “HAL Série 9000” que equipa uma nave em direção a Júpiter, é um personagem construído com apenas dois signos: seu olho eletrônico, que funciona como uma grande angular; e sua voz. Hal é capaz de ver e de conversar com os dois astronautas a bordo, e, inevitavelmente, na longa viagem, acaba se transformando num terceiro tripulante, dotado de uma consciência quase humana.
 
A linha que separa a máquina do homem é um dos temas prediletos da ficção-científica. A santíssima trindade da FC – Asimov, Clarke e Heinlein – criaram muitas histórias em que o homem não sabe mais com quem está tratando: com um monte de circuitos impessoais, ou com um ente dotado de subjetividade? Em “2001”(roteiro de Clarke e Kubrick), o astronauta Bowman decide desligar o computador para não ser morto, já que máquina decidiu tomar o poder e completar a missão sozinha (de certo modo, é legítima defesa: ela sabe que os humanos planejam desligá-la).
 
A cena em que Hal canta uma música infantil enquanto perde a consciência está em todas as antologias da relação homem-máquina. Hal diz que “sente” sua própria morte, implora para que não seja aniquilado, suplica para que continue existindo. A subjetividade é mais que evidente. “2001” continua tendo seus mistérios e suas perguntas não respondidas – e é isso que o faz um filme de exceção – mas não há qualquer dúvida sobre o recado do filme em relação aos computadores: a tecnologia alcançou um novo patamar, bem distante daquele osso utilizado para bater num inimigo pré-histórico, e está ameaçando a própria figura do homem. Não sei se Kubrick leu “A questão da técnica”, de Heidegger, mas eu apostaria muitas fichas nessa possibilidade.
 
O computador de “Raízes do mal” não é um assassino. Pelo contrário: ele é uma ferramenta desenvolvida para caçar assassinos (humanos). O romance saiu agora no Brasil, mas foi escrito em 1995. Tem, portanto, 15 anos, idade bem inferior à obra de Kubrick, o que poderia ser uma grande vantagem no quesito verossimilhança da representação da máquina. Afinal, está muito mais próximo dos computadores contemporâneos, com seus circuitos de silício de tamanho ínfimo. Dantec conseguiu prever alguns detalhes importantes – como a importância das interfaces homem-máquina e a progressão geométrica da capacidade de processamento – mas o ponto fundamental da relação com o usuário continua sendo a subjetividade. O Doutor Schizzo (esse é um dos apelidos do software, que funciona num notebook muito poderoso, mas semelhante aos que conhecemos), a exemplo de Hal, trata os humanos como iguais. Basicamente, a idéia é simular uma consciência humana, como explica Darquandier, o personagem que desenvolve o software:
 
“As neuromatrizes são seres que podemos considerar praticamente como animais domésticos, apesar da independência delas. Estão próximas de nós. Desconfiamos até que nos amam um pouco.” A capacidade de amar, é claro, só pode existir associada à capacidade de odiar: “Vi que a neuromatriz já tinha ficado puta da cara. Mas elas são feitas para nos servir, conforme as boas e velhas leis fixadas pelo Papa Asimov no seu tempo.”
 
O Dr. Schizzo dialoga com os humanos com a mesma desenvoltura de Hal. Também é capaz de interagir visualmente com quem está à sua frente. E também é capaz, pelo seu grande poder, de ameaçar os humanos. Ao contrário de Hal, o Dr. Schizzo não comanda uma nave espacial. Mas, se comandasse, possivelmente apresentaria os mesmos sonhos de autonomia. O problema do Dr. Schizzo – literariamente falando – é que ele fala demais. Faz piadas. Tenta ser espirituoso. E aí, pela falta de economia, acabamos duvidando um pouco dele. Ao contrário de Hal, que é lacônico e esconde o jogo, o Dr. Schizzo é um falastrão que deseja se exibir.
 
De qualquer maneira, recomendo a leitura de “Raízes do mal”. É uma mistura interessante de romance policial com ficção-científica, que lembra um pouco “Partículas elementares”, de Michel Houellebecq, sem o mesmo brilho. A representação das vozes da máquina deve ser, nos próximos anos, um tema recorrente no cinema e na literatura, pois é um assunto cada vez mais comum em nossas vidas. Dialogamos com caixas automáticos para tirar dinheiro dos bancos, brigamos com sistemas que reconhecem impressões digitais para entrar nos lugares, diariamente recebemos mensagens enviadas por softwares que simulam nos conhecer intimamente. A ficção talvez nos ensine um pouco sobre essa nova era, que pensávamos ser apenas mediada pelos computadores, mas que mostra, cada vez mais, sua essência maquínica profetizada por Kubrick.
 
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