As casas da Santo Inácio. As casas da Luciana de Abreu

Entre os zero e os vinte e dois anos, morei na rua Santo Inácio, número 455. Durante toda a minha infância, não havia edifício algum. Apenas casas, algumas maiores, outras menores. Algumas eram quase palácios; outras, como a da minha família, eram sobrados de classe média. Algumas tinham algum charme arquitetônico, outras eram apenas mais uma casa do bairro Moinhos de Vento.  Não havia lojas, nem bares, nem restaurantes. A sede da MPM Propaganda era, aparentemente, o único endereço comercial. Havia também a seda da TFP (Tradição, Família e Propriedade), de onde às vezes partiam estranhos – e assustadores – cortejos que desciam a rua, na direção da Marquês do Herval. E havia o Consulado Alemão, bem na frente da minha casa, onde podíamos alugar filmes em 16mm.

Pra falar a verdade, havia, sim, um edifício na rua Santo Inácio da minha infância, que se chamava (e, salvo engano, ainda se chama) Edifício Rizzo. Mas eram só três andares, de modo que nem ficava muito mais alto que as casas vizinhas. Lá pelo final dos anos 70, foi construído o primeiro edifício “de verdade”, uns dez andares,  de tijolos à vista, na esquina com a Luciana de Abreu. Havia muitas árvores no terreno, e elas foram razoavelmente preservadas, de modo que a rua não parecia ter se modificado muito.  Eu ainda andava de bicicleta pela calçada, já que os paralelepípedos na rua eram bastante irregulares. Podia ir até a Padre Chagas, comprar pão quentinho, ou esticar até a Caixa D’água, pra procurar pedras de cores e formatos estranhos.  Os eventos mais violentos da minha memória são as guerras de bolinhas (sementes) de cinamomo que travava com meus amigos.

Meu pai, que construiu nossa casa no início da década de 50, faleceu em 1982, e o sobrado cinza – já grande demais para a minha mãe, que morava praticamente sozinha – foi vendida poucos anos depois, junto com a casa da nossa vizinha, a dona Julieta, para dar lugar a um edifício. O mesmo destino teve a espetacular casa do dr. Gert e da dona Zilda, grandes amigos de mais pais e nossos vizinhos por décadas . O mesmo destino tiveram praticamente todas as outras casas da Santo Inácio. Os lugares da minha infância – a casa dos Schneiders, a casa dos Benincás, a casa em que ficava o Chalé Suíço, o Consulado da Alemanha –  foram derrubadas, substituídas por edifícios.

Quando passo por ali parece que estou, ao mesmo tempo, no lugar da minha infância e num lugar que desconheço por completo. Pra não dizer que restou alguma coisa, tem a linda casa amarela na esquina da Luciana de Abreu, tombada pelo patrimônio histórico, onde meu avô materno, Carlos Barth, criou sua família. Minha mãe, hoje com quase  94 anos, ainda pode apontar para a janelinha no sótão que iluminava seu quarto de bonecas. Eu não tenho a mesma sorte. O edifício de número 455, onde jamais entrei, não guarda qualquer lembrança dos jogos de futebol no pátio com meus irmãos e colegas do Anchieta, das caminhadas sonolentas depois do almoço familiar de domingo, dos passeios com Bóris, o irrequieto boxer que substituiu o nosso nobre (e destrambelhado) setter irlandês Lord. Enfim, não existe mais a rua Santo Inácio em que eu vivi.

Por essas razões sentimentais e nostálgicas (e muitas outras, de ordem racional; quem sabe escrevo outro artigo para enumerá-las) declaro meu apoio irrestrito ao movimento que luta pela preservação das casas da rua Luciana de Abreu que, ao que tudo indica, serão substituídas por mais um edifício. Não vamos deixar que aconteça o mesmo que aconteceu na Santo Inácio, onde o tempo e  espaço estão irremediavelmente perdidos em nome de uma modernidade que coloca formas previsíveis e sem graça no lugar de casas que tinham coração, alma e beleza.  Não sei quem tem razão, legalmente falando, mas não tenho a menor dúvida de que, moral e culturalmente falando , seria um crime contra a nossa cidade seguir a lógica financeira e continuar arrasando nosso patrimônio, nossas memórias e nossas infâncias.

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