Antes ou depois?

É quase unânime: a atual estrutura de financiamento do cinema brasileiro precisa mudar. Há um descompasso muito grande entre a quantidade de dinheiro liberada para a produção, via incentivo fiscal, e o número de ingressos vendidos para filmes brasileiros. Esse número vem caindo desde 2003. Tá na hora de fazer alguma coisa. Mas fazer o quê? Semana passada troquei alguns e-mails com Roberto Farias, diretor, entre outros filmes, de "O assalto ao trem pagador" e "Pra frente, Brasil", e produtor de 25 longas-metragens, desde 1957 ("Rico ri à toa"). Ele queria algumas informações sobre a realização de "3 Efes", e acabamos discutindo um pouco a situação atual do nosso mercado profissional. O Roberto vem, há tempos, pregando uma mudança radical na lógica de financiamento do cinema brasileiro. Transcrevo a seguir o trecho da nossa correspondência em que o Roberto explica sua proposta, que faz pensar sobre o que pode ser feito daqui pra frente.

Roberto Farias:

"Lívio Bruni dizia que aquele que não aprende sobre cinema em 5 anos pode desistir. Para ele não adiantava nada bater no peito vociferando 10, 20 ou 40 anos de cinema. Mas ele estava errado. A gente aprende todos os dias, porque nossa atividade é cheia de surpresas. Depois dos meus quase 60 anos de cinema, estou na mesma situação que você: roteiros na gaveta e ímpetos de repetir sua experiência."

"Incrível como você conseguiu realizar o filme (3 Efes) com tão pouco. (…) O que vale é o filme na lata, a história contada e a prova de que é  possível realizar filmes com mais liberdade, a baixo custo. Tenho defendido esta posição, jurando que o cinema será muito mais saudável se os incentivos forem concedidos depois, como adicionais de renda, e não antes, como é hoje.  Claro que você já percebeu que o cineasta que decide fazer seu filme independente do Estado não tem qualquer incentivo."

"Além de livrar o cineasta do constrangimento de ser um pedinte, o Adicional de Renda, como preconizo, devolve ao cineasta o orgulho perdido e a liberdade de fazer o filme que quiser, sem ter de se submeter previamente à opinião de ninguém. Gastam-se mais de 250 milhões de reais por ano em produção. É uma questão de remanejar esses recursos. Com esse dinheiro, o adicional de renda pode ser significativo e compensador, se estabelecermos um valor duas, três ou maior que o dos ingressos auferidos pelo filme nas salas de cinema."

"Se todos tiverem de realizar seus filmes como você fez, mais da metade dos ‘cineastas’ de hoje iria cantar em outra freguesia. (…) Se você somar toda receita que cabe aos produtores dos filmes nacionais durante um ano, verá que aqueles 250 milhões gastos pelo governo a cada ano dariam para capitalizar os verdadeiros realizadores/produtores, premiando os que se comunicam melhor com o público. Medida como esta, complementada com um programa de lançamento, financiando cópias e mídia, caberia em menos de 100 milhões, utilizados de maneira mais profissional."

"Se os cineastas não tiverem outra alternativa senão fazer filmes no esquema que você fez, assumindo a responsabilidade e investindo trabalho e os recursos que puderem arregimentar teremos um cinema mais sadio. Tenho certeza de que  o cinema brasileiro recuperará seu o público, porque ele será sua grande preocupação. E ainda sobrariam 150 milhões para outros programas, como a exibição e a distribuição."

Carlos Gerbase:

"Como ficam os estreantes e quem fez um só filme (e se deu mal na bilheteria)?"

Roberto Farias:

"O estreante continua estreando com os mesmos incentivos de hoje, sem problemas. Os recursos dão para isso.  Eles serão os únicos que terão de submeter-se a editais. E somente os que quiserem realizá-los e produzi-los. Digo isso porque produtoras estabelecidas poderão produzir filmes de iniciantes. Mas de iniciantes reconhecidos por ela como aptos a estrear. Por exemplo: quando havia Adicional de Renda, a RFFarias lançou vários diretores iniciantes, como Reginaldo Faria e Flávio Migliaccio. (…)  A RFFarias acreditou em nada menos que Arnaldo Jabor e co-produziu seu segundo filme, com ele e Paulo Porto, depois do retumbante fracasso do primeiro. E não fomos os únicos. Oswaldo Massaíni lançou estreantes, Herbert Richers e outros produtores também."

Carlos Gerbase:

"A outra questão que vejo é a seguinte: será que as salas ainda devem ser parâmetro para definir o ‘sucesso’ de um filme? O 3 Efes teve mais de 130 mil espectadores na internet, e menos de 2 mil nas salas. Na verdade, o mercado das salas foi o único deficitário. Eu acredito que as salas, hoje, funcionam mais como vitrines de lançamento para o filme, que vai se pagar mesmo nas outras mídias. O mercado de DVD já movimenta mais grana que as salas."

Roberto Farias:

"É isso mesmo. Mas (as salas) ainda são muito importantes, porque é a carreira que o filme faz no cinema que estabelece o valor dele para as outras mídias."

Carlos Gerbase:

"Então, se considerarmos para o adicional da renda apenas o que acontece nas salas, talvez algumas obras sejam injustiçadas."

Roberto Farias:

"Isso não. Porque há outros aspectos que podem amenizar esse problema. Aliás, não estou inventando nada. Apenas repetindo o que era o Adicional de Renda nos anos 60 e que possibilitou o surgimento do movimento do Cinema Novo, numa época em que em fazia cinema com empréstimos bancários. Por exemplo: a recompensa a filmes de qualidade. Independentemente do que fizerem na bilheteria, um júri anual escolhe algo como 25 filmes para receberem um prêmio especial, de qualidade, com um substancial e compensador aumento do índice do Adicional de Renda daqueles filmes."

"Veja bem. A escolha de 25 filme realizados por um corpo de jurados mantém o princípio de liberdade de escolha do cineasta porque não é o mesmo que submeter o projeto à comissões de seleção ou editais. Considerando a produção de hoje, este número é mais do que suficiente para reparar as possíveis injustiças a que você se referiu."

"Mas o pior de tudo é que os dirigentes dos organismos de cinema não querem saber de antigas experiências. Querem inventar tudo de novo, de maneira muito mais complicada."

*****

Aí estão as idéias do Roberto. Talvez elas assustem a muita gente, mas há coerência e vontade de mudar. Eu coloco apenas mais um dado: é preciso incluir a TV nessa discussão, pois os países melhor sucedidos no apoio à sua indústria cinematográfica – Estados Unidos e França, para ficar só nos mais óbvios – foram justamente os que conseguiram essa integração. Pensar o cinema separado do resto do mercado audiovisual é, a meu ver, como pensar num time de futebol como um centroavante isolado, único responsável por fazer gols. Futebol e cinema precisam de defesa e meio-campo, ou o adversário passa por cima.

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