Todos morrem no fim – Capí­tulo 1

Esta é mais uma história do inspetor Otávio, da Terceira DP de Sapucaia do Sul. A última aqui no blog. Na verdade, é o começo de uma história, que continua no romance "Todos morrem no fim", da editora Sulina, que será lançado, com sessão de autógrafos, na próxima quinta, dia 4 de novembro, 'as 20h30, na Feira do Livro de Porto Alegre.
 
Encerro aqui a experiência de criar um personagem e fazê-lo viver primeiro na rede, para só depois chegar nas páginas de um livro. Aprendi bastante. Agradeço a todos os leitores, em especial 'aqueles que enviaram comentários e sugestões. Espero fazer mais coisas parecidas num futuro próximo.
 
Todos morrem no fim
Capítulo 1
 
Os saltos altos e finos das botas de couro preto, compradas em Madri, numa liquidação da Gran Vía, não combinam com o piso esburacado do acesso ao estacionamento dos professores do Centro Universitário Vera Cruz, em Sapucaia do Sul. Mas combinam com a dona das botas, a professora Isabel. Suas longas pernas avançam no asfalto irregular seguindo uma rota de muitas curvas, que contorna as fendas mais traiçoeiras, capazes de engolir a ponta dos saltos e causar uma queda. Não seria a primeira.
 
Isabel, uma semana antes, caíra bem perto dali, machucando o joelho direito. Era meio-dia e o campus estava lotado. Dois professores de Engenharia vieram correndo ajudá-la, recebendo como prêmio a permissão de olhar por alguns minutos, e a curta distância, para as pernas mais cobiçadas do campus. Isabel levantou-se apoiada pelas mãos dos colegas e agradeceu, enquanto espanava a sujeira de sua elegante saia de lã cinza.
 
Agora, sexta-feira, onze e quinze da noite, iluminado precariamente por um único poste com refletor de halogênio, o acesso não abriga professores solícitos. O estacionamento, alguns metros adiante, também está deserto, com exceção da caminhonete Pajero cinza-prata da própria Isabel e do Fiat Uno azul do professor Max, cheio de batidas nos para-choques. O temor de uma armadilha para os saltos de suas botas cadencia os passos de Isabel, mas em momento algum ela receia algo mais doloroso que um novo joelho esfolado.
 
Quando o acesso termina, e começa o estacionamento, o piso sob as botas da professora muda radicalmente. Nas últimas férias de verão o asfalto foi inteiramente substituído por concreto, que ainda está bem liso e não perdeu o seu delicado tom cinza claro. Poucos metros antes de chegar à caminhonete, Isabel retira da pequena bolsa a tiracolo um chaveiro e, apontando o controle remoto para o veículo, aperta um botão. Ela ouve um toque curto da buzina e o ruído das travas das portas sendo erguidas, enquanto as sinaleiras piscam duas vezes. O carro está pronto para recebê-la e levá-la para Porto Alegre, uma viagem curta, que ela costuma fazer em menos de vinte minutos, acelerando forte na BR-116 e aproveitando toda a potência do motor de oito cilindros, o que já lhe custou algumas multas e a quase suspensão de sua carteira de motorista.
 
Quando estende a mão para abrir a porta, ouve o barulho de passos rápidos nas suas costas e, ao tentar voltar-se, vislumbra, por uma fração de segundo, um reflexo prateado, que antecede um golpe violento na lateral de sua cabeça, pegando em cheio sua orelha direita. A haste de seus óculos, esmigalhada, penetra na pele, abrindo um sulco parecido com os do piso do acesso ao estacionamento. A parte superior da armação, quebrada e deslocada para cima, rasga o supercílio. O sangue aflora imediatamente. O resto dos óculos, impulsionado pelo golpe, voa para longe. As lentes grossas e pesadas separam-se da armação quando os óculos tocam o solo. A bolsa, pequena e elegante, escorrega pelo ombro, depois pelo braço e também cai no chão. Isabel desaba ao lado do carro com a cabeça virada para baixo. Além de tonta, está quase cega. Com seus dez graus de miopia, já é normalmente uma deficiente visual quando está sem óculos. O sangue, que flui numa corrente contínua da orelha e do supercílio para seus olhos, só completa a sensação de estar caindo em parafuso num buraco escuro, pegajoso e muito profundo. Não há dor, porque não há mais capacidade de sentir dor. Sua mente prepara-se para desligar.
 
Mas, de repente, duas mãos fazem com que seu corpo vire e fique de costas para o solo. É como se batesse numa lateral do buraco, e o impacto a impedisse de continuar caindo suavemente rumo à inconsciência. A mente de Isabel não desliga. Suas pernas são afastadas, e há uma pressão sobre seu corpo. Contudo, não há som, não há qualquer imagem nítida, de modo que Isabel não reage, nem pensa em reagir. Simplesmente está ali, em vez de desistir por inteiro. Fica por alguns instantes num equilíbrio precário, metade do organismo querendo continuar a cair, desta vez até o fundo do buraco escuro, e a outra metade tentando se segurar e encontrar um ponto de apoio qualquer. A segunda metade vence, e a sua consciência recupera-se lentamente. Primeiro ouve um zumbido agudo. Depois é a dor, que tem o foco principal no ouvido interno, mas ricocheteia por toda a cabeça. Sua mente reclama e planeja outra vez um reconfortante desmaio, desligando fileiras inteiras de neurônios. Entretanto, é tarde demais: alguma coisa muito primitiva, que está além da consciência e talvez seja mais antiga do que ela, trabalha no sentido oposto. Uma abundante descarga de adrenalina chega ao sangue de Isabel, fazendo o coração acelerar de repente e exigindo que os pulmões voltem a funcionar a pleno. Ela sente o sabor doce do sangue em sua língua, e, finalmente, percebe que algo está acontecendo um pouco abaixo de sua cintura.
 
Consegue abrir uma pequena fenda nos olhos, mas é impossível inclinar o pescoço, de modo que vê apenas a parte de cima de uma das janelas do seu carro. Com grande esforço, vira um pouco mais a cabeça naquela direção e vê a porta traseira, que reflete uma figura humana, pouco mais que uma sombra, agachada ou ajoelhada, entre suas pernas. Um dos braços da figura se ergue e, pouco depois, Isabel sente uma pressão forte em suas coxas. Apesar do zumbido infernal nos ouvidos, distingue o ruído do tecido das calcinhas se rompendo. A sombra atira a calcinha longe.
 
Está acontecendo um estupro, deduz, ainda sem perceber que a vítima do estupro é ela. A porta reluzente do seu carro mostra uma cena de pesadelo, mas Isabel não sabe que é a protagonista, em vez de simples espectadora. Tudo muda quando alguma coisa penetra brutalmente na sua vagina, acrescentando uma dor nova e fazendo sua consciência voltar por completo. Há um corpo em cima dela, fazendo pressão em suas ancas e mantendo seus joelhos grudados no chão. Gira a cabeça e tenta incliná-la, para ver o agressor, mas ele não passa de um vulto disforme. A coisa em sua vagina é empurrada mais para o fundo, e pela primeira vez, além da dor, sente a humilhação da sevícia e a raiva por estar dominada, ferida, de pernas abertas, enquanto é violentamente penetrada.
 
Desiste de olhar. Tenta concentrar-se e pensar numa reação. Isabel é jovem, tem pouco mais de 25 anos, mas está longe de ser uma garotinha indefesa. Em Barcelona, já afastara com sucesso um catalão bêbado que – apesar de ser bonito e dono de um apartamento maravilhoso – queria fazer alguma coisa que ela não estava com vontade de fazer. Ela consentira em acompanhá-lo até o quarto no meio da festa, e até estava gostando dos beijos, mas daí ao sexo com um cara que conhecera há quarenta e cinco minutos há uma certa distância, que naquela noite Isabel não pensava em percorrer. Suas longas pernas tiveram músculos suficientes para empurrar o catalão para trás e, quando ele tentou voltar, um chute direto no saco acabou com a brincadeira. E também com a festa.
 
A decisão de reagir provoca uma nova inundação de adrenalina no organismo de Isabel. Ela respira fundo três vezes. O zumbido na cabeça aumenta. É como uma broca de dentista enfiada pela orelha até a base do nariz. Decide testar a perna direita e retesa os músculos, procurando levantá-la. A reação é imediata. A pressão nas ancas aumenta e ouve, no meio do zumbido, pouco mais que um sussurro: "Puta de merda". A raiva de Isabel aumenta. Percebe que pode dobrar os joelhos. Consegue, com grande esforço, colocar parte da sola do pé direito no solo. Finalmente tem um ponto de apoio. Respira fundo outra vez. Sabe que não terá uma segunda chance. Numa explosão muscular, desloca toda a sua energia para a perna direita. Os tendões respondem, mostrando que as muitas sessões de exercícios na academia não tiveram resultados apenas estéticos. O quadril de Isabel projeta-se para cima, desequilibrando o agressor. A pressão nas ancas desaparece. Ainda está no chão, mas está livre.
 
Agora chuto o saco do filho da puta estuprador, como fiz em Barcelona, pensa Isabel. Mas ela está sem óculos, com uma pasta de sangue semicoagulado nos olhos. A sombra ergue-se bem à sua frente, com algo ameaçador na mão, que reflete por um instante a luz vinda do poste. Isabel mira a região no meio das pernas e lança seu pé direito com toda a força. Se o bico fino da bota atingir o alvo, fará um estrago considerável. A perna, contudo, descreve um arco completo, cortando apenas o ar frio do estacionamento e passando a alguns centímetros do seu objetivo. A sombra ergue sua arma. Isabel grita pela primeira e única vez. Um grito de puro pavor, interrompido pelo choque selvagem do objeto duro contra seu crânio. Ela ouviria o barulho dos ossos se partindo, se já não estivesse caindo pela segunda vez, naquele mesmo buraco escuro e profundo, de onde – e este foi seu último pensamento – nunca mais poderia sair.
 
Um apito distante. Outro, mais forte. Barulho de passos rápidos, talvez uma corrida. A sombra recua, com a arma na mão, e desaparece. Um homem velho e corpulento, ofegante, vestido com um uniforme marrom, entra no estacionamento e aproxima-se do corpo de Isabel. Quando vê a cabeça da professora, envolta numa máscara de sangue, sopra seu apito com toda a força, várias vezes, mas só obtém como resposta os latidos nervosos dos cães vadios que circulam atrás da cerca do campus. Outros cachorros, mais distantes, acordam e se manifestam, criando uma trilha melancólica e amarga para a noite de Sapucaia do Sul.
 

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