Os problemas de enganar o enganado

Não gostei de “Shutter Island” e vou tentar explicar por quê.
 
Temos uma velha expressão aqui na Casa de Cinema, utilizada na estréia dos nossos filmes quando, eventualmente, percebemos uma boa recepção do público: “Enganamos eles”. Fazer cinema é manipular a mais poderosa máquina de criar mentiras que a humanidade já inventou. Um bom filme é, na sua acepção mais clássica, uma mentira que deu certo, ou seja, conseguiu atingir o grau de verossimilhança necessário para fazer os espectadores acreditarem naquela história como se fosse uma “realidade” e se emocionarem com ela, vivendo-a intensamente. Mas, atenção: a expressão não vale apenas para filmes clássicos e realistas. É possível enganar e emocionar os espectadores de muitas maneiras diferentes. A “realidade” a ser obtida é uma sensação subjetiva, um discurso, e não uma representação especular do “real”. Resumindo: “Enganamos eles” pode servir tanto para comentar a recepção de um filme clássico e narrativo, como de um filme experimental e metalinguístico. De qualquer maneira, o público tem que ser “enganado”. Se não foi enganado, o filme não funcionou. A mentira não colou. A piada não funcionou. A história não decolou.
 
Uma das principais convenções do cinema é a seguinte: o que a objetiva da câmera captou está acontecendo. Acontecendo, é claro, na realidade do filme. Ou no universo diegético do filme, como diria o professor Anibal Damasceno. Para que uma imagem perca esse status de realidade, é preciso acrescentar um signo paralelo, que vai desmontar a convenção. Vou dar alguns exemplos. Ouvimos a voz de um personagem, sobreposta à sua imagem beijando Sharon Stone, e a voz diz: “Ontem imaginei que eu estava beijando a Sharon Stone”. Ou vemos um sujeito dormindo, muito agitado, e logo depois, num cenário fantasmagórico, o mesmo sujeito está sendo perseguido por um monstro gosmento. TODOS os espectadores entendem que tanto a Sharon Stone quanto o monstro não pertencem à realidade “objetiva” do filme. São produtos subjetivos: uma mulher imaginada e um monstro sonhado.
 
Contudo, por uma opção do realizador do filme (ou por incompetência mesmo), às vezes esses signos paralelos bem óbvios não são acrescentados. O que leva o espectador a uma situação de dúvida. Até aí, nada demais. Questionar a realidade apresentada, desconfiar do narrador e apresentar diferentes discursos sobre o que aconteceu são procedimentos muito comuns na literatura do século 20 e no cinema dito “moderno” (pós “Cidadão Kane”). O leitor/espectador médio é capaz de lidar bem com esse terreno pantanoso. Eu mesmo gosto do procedimento, que utilizei em alguns momentos dos meus filmes, até porque a confusão entre o real e o imaginado é um dos meus temas favoritos. Enfim, filmes são mentiras que podem conter mentiras adicionais, e, num filme que queira realmente complicar as coisas, essas mentiras podem até formar camadas sobrepostas. Sem problemas. Alguém aí viu “F for fake”, de Orson Wells?
 
O problema (e aqui falo como espectador) é quando o filme, além de não anunciar que essas camadas existem, de repente surpreende o espectador com um signo paralelo bem tardio, quase no final, o que provoca uma reavaliação radical do status de realidade das imagens anteriormente apresentadas. O espectador, que já estava acreditando na história do filme (ou seja, tinha sido eficazmente enganado), é enganado mais uma vez. Esse procedimento acontece em três filmes mais ou menos recentes: “Uma mente brilhante”(2001), “Spider”(2002) e “Shutter island”(2010). Gosto dos dois primeiros e não gosto do último. E a razão é simples. Na reavaliação do que “aconteceu de verdade” no filmes de Ron Howard e David Cronenberg fui levado a uma completa revisão da trama e dos personagens principais (descobre-se que eles são psicóticos e que estávamos recebendo imagens produzidas por suas mentes perturbadas), e esta é a razão de ser dos filmes: refletir sobre os processos mentais que fogem dos padrões considerados normais. A rasteira dada no espectador está organicamente ligada ao propósito principal das histórias. Em “Shutter island”, um filme de suspense que brinca com os clichês do gênero, a rasteira é muito artificial. Não me senti enganado, no melhor sentido do termo, e sim iludido, ludibriado, sacaneado. Além disso, como a trama é cheia de detalhes e há muitos personagens coadjuvantes, é impossível reavaliar seriamente todas as peripécias e colocá-las numa nova perspectiva, o que os filmes de Howard e Cronenberg permitem, até com certa facilidade.
 
Quem leu “A marca humana”, de Philip Roth, talvez compreenda melhor o que eu estou falando. Quando aquela informação surpreendente sobre o personagem principal aparece, dá vontade de ler tudo de novo, mas, na verdade, não precisa. Porque não se trata de um truque, de uma armadilha. É simplesmente um novo dado, que coloca o já lido em uma nova perspectiva. Arte. Scorsese simplesmente banca o esperto. E, como também diz o professor Anibal Damasceno, esperteza não tem nada a ver com arte.
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