O tempo de um plano, um plano para o tempo

Determinar qual é a duração ideal de um plano num filme não é tarefa fácil. O diretor começa a pensar nisso na decupagem, quando decide quantos planos – e que tipo de planos – serão necessários para contar determinada cena. Continua pensando nisso ao filmar, pois cada um desses planos será executado individualmente, às vezes mais de uma vez, no que chamamos de tomadas, e estas terão um ponto de partida ("Ação", diz o diretor), e um final ("Corta", diz o diretor). Uma série de decisões acontecem entre estes dois momentos, e muitas delas podem influir decisivamente no ritmo interno da tomada: o movimento dos atores, o movimento da câmera, a entrada e saída de elementos do quadro, etc. O diretor ainda terá a chance de pensar no tempo de cada plano na edição de seu filme, de preferência ao lado de um bom montador, capaz de examinar o tempo e o ritmo de cada tomada com mais distanciamento e, portanto, com maior senso crítico. Um filme bem montado é aquele que não só conta a história como também estabelece o ritmo ideal para a narrativa. Se cada plano estiver em seu tempo ideal, teremos um fluxo agradável entre o que está na tela – tarefa do cineasta – e o que está sendo construído na mente do público – tarefa de cada um dos espectadores.

Esse conjunto de procedimentos não é novo. Foi estabelecido no começo do século 20, assim que o cinema superou sua primeira fase, em que a duração de cada tomada era determinado pelo tempo que todo filme virgem que cabia na câmera levava para ser exposto. Essa tomada, inteira, sem corte algum, virava um plano, que virava o filme. Naquele tempo, tudo era mais simples. Em compensação, esses filmes, com aproximadamente um minuto de duração, não eram exatamente filmes, tanto que eram chamados de "vistas animadas". A história da montagem, que começa com Méliès, passa por Edwin Porter e Griffith, e atinge uma sofisticação admirável com Eisenstein, é a história do verdadeiro cinema. Muita coisa aconteceu de Eisenstein até hoje, mas, na essência, continuamos lutando para conseguir obter a mesma excelência narrativa e dramática da cena da escadaria de Odessa. Ou não?

Há duas pragas se espalhando no cinema contemporâneo. Ou melhor, há uma doença ainda não diagnosticada e um sintoma bem aparente. A doença é a decadência da decupagem, e o sintoma é o ritmo exasperante de muitos filmes. Não estou falando dos filmes de Hollywood. Esses têm muitas coisas exasperantes, mas o ritmo nunca é uma delas. Estou falando dos filmes de arte, aqueles que têm pretensões estéticas, em vez de pretensões exclusivamente mercadológicas. Estou falando dessa mania absurda de estender a duração de um plano até o limite da paciência do espectador. Estou falando dessa confusão – intencional, é claro – entre a fuga da narrativa clássica e a criação de um ritmo pretensamente "artístico", ou "cabeça", em que os planos são sustentados na tela depois que eles já disseram tudo que podiam dizer.

Não estou falando de filmes com ritmo lento. Adoro Eric Rohmer. Adoro Ingmar Bergamn. Lembro com emoção dos tempos longos de "A árvore dos tamancos", de Ermanno Olmi. Gosto de planos-seqüência quando estes estão realmente contando a história. Respeito o que escreveu Bazin sobre a possibilidade do cineasta "montar com a câmera", ou seja, retirar um pouco (ou bastante) da  edição a responsabilidade pelo ritmo do filme. Os cinemas novos produziram belas obras com essa idéia na cabeça. Não estou dizendo, espero que me entendam, que um filme deve ter um ritmo "rápido". Cada filme deve ter seu ritmo. Uma comédia não pode ter o mesmo ritmo de uma tragédia. "Atrás da linha vermelha", um filme de guerra de Terrence Mallick, não tem o ritmo de "Apocalypse Now", um filme de guerra de Coppola. E os dois são muito bons. Ou seja: não há receita para a duração ideal de um plano.

Mas o sintoma da doença está em muitos filmes contemporâneos. Adotou-se – com o aplauso de muitos críticos respeitados, e a meu ver equivocados – uma nova noção sobre a duração de um plano. Para que um filme seja "cabeça", "de arte", "bacana", seus planos devem durar muito mais do que seria razoável. Podem ser fixos, ou a câmera pode se mover na nuca do personagem, mas devem durar eternamente. Que chatice! E não culpem o cinema iraniano. Os iranianos têm seu tempo (embora, às vezes, como todo mundo, também saibam perder tempo). A culpa – ou melhor, a origem da doença – é a decadência da decupagem, que leva à frouxidão da filmagem, que leva à não-montagem. Se não vai cortar quando a ação já acabou, quando o personagem já saiu de quadro, se vai sustentar o plano quando o universo inteiro está gritando "Corta!", então o diretor – e seu montador – estão entrando naquele grupo seleto de cineastas que "fazem arte". Cansei de engolir essa chatice. Pra tudo tem limite. Não podemos – nem devemos – imitar o ritmo de Hollywood, mas imitar esses chatos é muito pior. Fazer um bom plano para cada tempo cinematográfico – e trabalhar a partir desse plano – ainda é o grande desafio. Cinema não é pintura, nem é vídeo-arte, em que o sujeito determina quanto tempo ficará em frente à obra. O espectador de um filme não pode escapar da duração equivocada e pretensiosa de um plano. Posso ser chamado de reacionário. Tudo bem. Acredito que o novo sempre vem, acredito que as regras devem ser desrespeitadas sempre que possível e conveniente, mas também acredito em ouvir o universo inteiro – com exceção de alguns críticos e cineastas chatos – gritando "Corta!".

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