Inadaptáveis: quando a literatura resiste à tela – parte 1

As possibilidades do discurso cinematográfico são muito grandes, mas não são irrestritas. Acho que algumas obras literárias – não só por sua constituição verbal intrínseca, mas também pelo tipo de reação que provocam no leitor – são inadaptáveis para o campo audiovisual, isto é, não podem ser transcritas sem que se perca pelo menos uma característica essencial do original. Essa dificuldade pode estar presente em obras muito diferentes, do ponto de vista histórico ou estilístico. Vou citar quatro: "A Ilíada", de Homero; "Ulisses", de James Joyce; a série "Coelho" ("Rabbit"), em cinco volumes, de John Updike; e a série "O tempo e o vento", em sete volumes, de Érico Veríssimo. São obras de grande fôlego, com pelo menos 500 páginas, e algumas ultrapassam a casa das 2 mil páginas. Isso não significa, contudo, que a impossibilidade de adaptação decorra sempre da simples extensão do texto literário – sem limite determinado – contraposto ao tempo clássico das obras audiovisuais no cinema. Mais importantes são as características singulares da leitura de uma obra de fôlego na literatura, que pode durar semanas inteiras, contra a experiência clássica de duas horas numa sala escura. As quatro obras citadas já foram adaptadas, no todo ou em parte. David Benioff (roteiro) e Wolfgang Petersen (direção), fizeram o filme "Tróia" (2004), baseado na "Ilíada". É interessante notar que a "Odisséia" foi levada para a tela dezenas de vezes, mas a "Ilíada" mantinha-se quase virgem até Brad Pitt virar Aquiles. Sean Walsh (roteiro e direção) realizou "Bloom" (2003), baseado em "Ulisses", de Joyce. Jack Smight (direção) e Howard Kreitsek (roteiro) adaptaram o primeiro livro da série Coelho, de Updike, "Coelho corre", em 1970. Anselmo Duarte fez "Um certo capitão Rodrigo" em 1971, com um fragmento de "O tempo e o vento", de Veríssimo. Diz a lenda que, no final dos anos 1970, um cineasta brasileiro trouxe da Itália um renomado montador para seu longa-metragem recém filmado, um épico baseado em episódio da história do Brasil. Para que o italiano tivesse  um primeiro contato com o trabalho que tinha pela frente, o copião (a totalidade das imagens captadas, ainda na ordem da filmagem) foi projetado numa sala de cinema. Ao final das mais de 20 horas de exibição, divididas em várias sessões de duas horas e pouco, o montador italiano virou-se para o cineasta brasileiro, dizendo: "No monta". E, antes de qualquer contestação, completou: "E Io no monto!" Dali foi direto para o aeroporto, e nunca mais foi visto por estas bandas. O filme, é claro, acabou sendo montado. Os juízos estéticos sobre o que pode ou não pode ser feito são sempre subjetivos. Para montar um filme, naquela época, nem precisava computador: bastava moviola, coladeira e durex. Essa lenda do mundo da montagem pode funcionar como uma bela fábula para o mundo das adaptações cinematográficas de obras literárias. Por mais assustadora que seja a tarefa da transcrição, por mais abalizadas que sejam as opiniões que desaconselham o empreendimento, sempre haverá um roteirista disposto a encarar o desafio. Pretendo, nos próximos posts, analisar o resultado das quatro adaptações citadas e tentar explicar por que elas não conseguem reproduzir a essência das obras originais. E quem quiser trazer mais exemplos, à vontade.

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