Dois suicidas

Assisti neste final de semana a dois filmes com personagens suicidas: o francês “A bela Junie”, de Christophe Honoré, e o americano “Amantes”, de James Gray. Gostei muito do segundo e fiquei entediado com o primeiro. De certa forma, isso foi uma grande reversão de expectativa, pois esperava muito da obra de Honoré (já tinha lido muitos elogios ao filme), enquanto a participação de Gwyneth Paltrow no filme de Gray parecia indicar mais uma daqueles dramas românticos açucarados de Hollywood. Só entrei no cinema pela boa lembrança de “Os Donos da Noite”, filme anterior de Gray, e pela presença de Joaquin Phoenix no elenco.

O suicídio é um tema difícil. Lembro das longas discussões sobre o personagem do Foguinho (Rudi Lagemann) em “Me Beija”, dirigido por Werner Schünemann. Desde que li o roteiro pela primeira vez, achava que a premissa básica da história estava errada. Em vez de narrar o caminho do personagem até a decisão de suicidar-se, o filme contava as ações de um cara que já decidiu suicidar-se (por motivos que só são parcialmente revelados no final) e que, sendo uma espécie de “morto-vivo”, tem reações ilógicas e inconsequentes durante toda a trama. Original, com certeza. Mas pouco dramático.

Estudei um pouco o tema do suicídio há algum tempo, por conta de uma história que escrevi, e recentemente falei com um psiquiatra que é especializado no assunto. Não há, é claro, uma “padrão suicida” seguido por todos os que tentam (ou conseguem) se matar, mas há estudos estatísticos que mostram uma prevalência importante: até alcançar seu triste objetivo, o suicida geralmente tenta várias vezes. A decisão vai amadurecendo aos poucos, cruelmente, dolorosamente, até que um primeiro ato desesperado acontece. Se este não é seguido pela morte (não é fácil encontrar os meios adequados), e os motivos continuam lá, novas tentativas virão.

O suicídio do personagem Otto em “A bela Junie” acontece de modo tão inesperado e bobo que não senti pena dele. Tudo bem, ele está apaixonado e tem 17 anos, idade difícil e perigosa. Mas matar-se porque um amigo viu sua namorada dar um beijo no professor de italiano parece ser algo bobo. Tudo bem, podia não ser algo bobo, se o filme tivesse me convencido de que a paixão de Otto era avassaladora, ou que ele era um cara psicologicamente frágil, ou que já tivera outras desilusões amorosas, ou que sofria de depressão profunda, ou que, sei lá, que lera romances românticos demais, parecidos com “A princesa de Clèves”, de Madame de La Fayette que inspirou o roteiro. Mas eu pouco sabia de Otto. Pra mim, ele era um estudante normal, um idiota apaixonado, e só. Os críticos talvez digam: ele é um personagem típico da “nouvelle-vague” (que Honoré reverencia): inconsequente, não-padronizado, não-dramatizado. E eu diria: Eric Rohmer e Truffaut jamais construiriam um suicida como Otto. Godard, talvez. Por essas e por outras, tenho em casa dezessete filmes do Rohmer, e só “Acossado” do Godard.

Já o suicida de “Amantes” segue a cartilha. A primeira cena é uma tentativa de suicídio mal-sucedida. Mais tarde, ficamos sabendo que ele já tentara antes. Ele toma anti-depressivos, e a família (simpática, mas opressiva) está sempre esperando algo ruim. Esse sujeito complicadíssimo, de repente, está diante de duas mulheres belíssimas. Apaixona-se por uma (a errada, pois é tão complicada quanto ele) e simpatiza com outra (a certa, pois é bem “centrada” e capaz de segurar a barra, ou pelo menos tentar). O filme narra o tortuoso caminho do personagem até tomar sua decisão. O final, que eu não vou contar, não é feliz, nem triste. É as duas coisas ao mesmo tempo. E é muito dramático.

Os livros de roteiro (Syd Field, por exemplo) costumam ensinar que os cinema europeu dá prioridade ao personagem sobre a trama, enquanto Hollywood pensa antes na trama, e só depois no personagem. Esses dois filmes, produzidos mais ou menos ao mesmo tempo, são uma prova de que essa simplificação é só isso mesmo: uma simplificação. O filme americano tem personagens que moldam a trama organicamente, enquanto o francês tem uma trama que recruta personagens autoritariamente. O americano Gray filma com menos pretensões estilísticas que seu colega francês, tão blasé e, às vezes, tão vazio. “Amantes” não é um filme inesquecível, com certeza, e “A bela Junie” tem suas qualidades (o uso da música, por exemplo), mas o primeiro tem um suicida muito mais emocionante e humano, e isso faz toda a diferença no mundo dos vivos.

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