Direitos autorais (2)

John Tagg, em “El peso da la representación” (2005), conta uma história muito interessante sobre a origem da legislação que trata da propriedade das fotografias.
 
Quando foram obtidas as primeiras imagens permanentes a partir de uma câmara escura, era unânime a opinião de que não havia qualquer direito autoral envolvido com o produto desta tecnologia. Afinal, a transposição efetuada pela máquina fotográfica era de natureza objetiva (a luz incide sobre um determinado motivo da natureza e reflete na direção da lente da câmera, que a leva a um material fotossensível). Não é por coincidência, portanto, que a lente da câmera ainda hoje é chamada de “objetiva”. Um processo mecânico-tecnológico, e não autoral-criativo. Ninguém estava interessado nos direitos autorais referentes a um daguerreótipo, que não permitia a realização de cópias. Nos retratos das famílias burguesas das décadas de 1840 e 1850, as duas partes estavam satisfeitas: o daguerreotipista, que produzira a imagem e cobrara por ela, e os cidadãos retratados, que pagaram ao daguerreotipista pelo serviço. Também não é coincidência que a grande maioria dessas fotos seja de fotógrafos anônimos. O único nome que ficou para a história foi o de Louis Daguerre, não por seu um grande fotógrafo, e sim por ter inventado o sistema tecnológico, que teve sua patente comprada pelo governo francês para ser tornada domínio público.
 
Tudo mudou radicalmente quando foi inventada uma maneira de reproduzir as imagens em massa, criando o mercado dos “cartões-postais”, que tinham, basicamente, três temas, por ordem de importância econômica: pornografia, celebridades da política e das artes, e belas paisagens. Em 1850, a circulação de fotos pornográficas era tão intensa que os habituais guardiões da moralidade aprovaram uma lei que proibia a sua venda em locais públicos e previa penas severas para a posse de negativos com imagens imorais (TAGG, p.137). A participação dos tribunais, contudo, não se restringiu à censura. Com as altas quantias envolvidas na circulação de imagens, era necessário determinar um regime claro de propriedade jurídica das fotos, de modo a impedir o que hoje chamamos de “pirataria”. Mas como fazer isso, se uma foto era considerada um registro “objetivo” do mundo, sem envolver um sujeito autoral? Ou, como pergunta Tagg:
 
"Cómo puede una reproducción fotográfica de algo que pertenece a todos – el domínio público de calles, ríos e águas territoriales – reapropiarse de la propiedad pública y devenir propiedad del fotógrafo? Como puede el fotógrafo ser el propietario de la reproducción de lo real, es decir, la fotografia? Estas son las cuestiones que atrajeron la urgente atención de jueces y abogados el na Francia del siglo XIX, a la vez que lidiaban com las categorias legales establecidas y kas concepciones jurídicas de sujeto, realidad e imagen fotográfica" (TAGG, p.141).
 
Tratava-se, antes de mais nada, de assegurar a determinadas empresas distribuidoras de imagens que seus produtos tinham um valor comercial, protegido por lei, impedindo cópias de fotografias já exploradas num determinado mercado e que “pertenciam” a empresas. Mas como conciliar esse desejo de propriedade de uma fotografia se esta não tinha autor algum e não passava de uma transposição do real para um pedaço de papel? E, se não havia um autor-sujeito, como poderia haver um proprietário-empresa? Empresas não apertam o botão de uma câmera e tiram fotos. A “verdade”, em meados do século 19, era que, ao contrário dos sentimentos morais já estabelecidos em relação à pornografia, a pirataria de imagens de belas paisagens ou de seres humanos célebres não tinha nada de errado e, portanto, não podia ser combatida legalmente. O que fazer? Simples: mudar a “verdade”.
 
Michel Foucault, autor muito presente nas reflexões de Tagg, ensina que a “verdade” sobre determinado assunto depende, basicamente, da hegemonia de determinados discursos sobre outros: “(…) a verdade não existe fora do poder ou sem poder (…). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplias coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder.” (FOUCAULT, 2000, p. 12). Na época da invenção da fotografia, a burguesia havia estabelecido o seu “regime de verdade”, baseado num certo “regime de sentido” (TAGG, p.136), que, entre outras coisas, permitia o uso de fotografias nos tribunais como provas juridicamente aceitáveis – e, às vezes, muito importantes – nos processos criminais. Essa concepção da fotografia estava totalmente de acordo com o “modo realista” de representação do mundo, que predominava especialmente na literatura. Mais um complicador para as empresas distribuidoras de imagem, que tinham que se contrapor a um regime jurídico que dava às fotografias o status de “verdade”. Só havia uma alternativa: atacar essa pretensa objetividade da fotografia e dar-lhe um potencial artístico, capaz de torná-la “propriedade de um sujeito criativo” (TAGG, p. 137).
 
"A lo largo del siglo XIX, la cuestión de si la fotografía pertencia al ámbito del arte o al ámbito de la ciencia era iseparable del proceso de regulación y control de uma pujante industria fotográfica. Alli donde se planteaban custiones relacionadas com los derechos de reproducción, la ley se veía forzada a interceder entre uma defensa que argumentaba que la fotografía no era uns obra de arte y que portanto no podía ser objeto de propiedad restringida, y uma acusación que argumentaba lo contrário. (…) la disputa sobre posición artística de la fotografia se resolvería no em el debate estético, sino em los tribunales." (TAGG, p.137)
 
O processo de mudança foi bastante rápido, o que não é surpreendente quando forças economicamente poderosas fazem sua pressão no sistema capitalista. Os juristas franceses fizeram um esforço enorme para, num contorcionismo legal, permitir que as fotografias fossem objetos de apropriação. Para isso, o fotógrafo deve, necessariamente, passar da categoria de “operador de um processo mecânico e impessoal” para a de “sujeito criador de uma nova realidade a partir da realidade que está à frente da câmera”. Em 1865, o “Code internationale de propriété industrial, artística ett littéraire” determinou que era permissível uma apropriação pessoal de um domínio público (a imagem de uma certa praça de Paris, por exemplo), mas somente com a condição de que esta imagem fotográfica fosse uma criação, e não uma mera reprodução do real
 
Criava-se, assim, juridicamente falando, a estética fotográfica. Os legisladores começavam o difícil processo de separação das fotos que contém um traço estilístico e estão “revestidas da personalidade de um sujeito criador” (TAGG, p. 141), daquelas que não passam de signos indiciais de uma realidade pretensamente objetiva. A dificuldade, contudo, ficava para o campo da estética, para os debates acadêmicos. Mas, do ponto de vista legal, era simples: um fotógrafo podia “recriar” a realidade, tornando-se assim um “autor”, com certos “direitos autorais”, que eram repassados para as empresas distribuidoras que “zelavam” para que esses direitos não fossem ameaçados. Com isso, indiretamente, seus direitos comerciais eram preservados, e a pirataria podia ser juridicamente combatida, com ações da polícia.
 
A “máquina fotográfica”, antes considerada pela lei um aparelho autônomo, capaz de reproduzir a realidade, transforma-se agora num mero instrumento à disposição de um sujeito disposto a “recriar a realidade” de acordo com seu estilo e suas técnicas particulares. Bastava agora, para completar a operação de transformação da verdade, transformar esse sujeito criativo, individual e humano numa figura jurídica mais adequada para o controle da circulação das imagens. Em 1880, a indústria fotográfica já estava organizada empresarialmente. Nadar, por exemplo, lucrava muito com seus retratos, em sua maioria obtidos em processo coletivo, numa linha de montagem que empregava outros fotógrafos e laboratoristas. Apesar disso, as fotos eram assinadas por Nadar. O empresário, dono do capital capaz de criar e manter o negócio, passava a ser o verdadeiro detentor dos direitos autorais, intelectuais e comerciais das imagens produzidas. Seus empregados não passavam de uma força de trabalho anônima, que vivia de salário. No final das contas, o autor era o capital. É essa a realidade até hoje.
 
FOUCALT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000
TAGG, John. El peso de la representación. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005
 
(segue em breve)
 
 
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